A sucursal do inferno

Nas horas de folga ou quando a situação financeira permite, costumo atender pelo codinome de Márcia Consumista. Não adianta prometer que vou me controlar, …

Nas horas de folga ou quando a situação financeira permite, costumo atender pelo codinome de Márcia Consumista. Não adianta prometer que vou me controlar, fazer abstinência, associar-me na FIC (Federação dos Inimigos do Consumo) e anotar na agenda com orgulho: mais um dia sem comprar nada. Toda a boa intenção termina na frente de uma vitrine bem colorida, de condições imperdíveis ou daquelas ofertas que só valem para a segunda-feira. Mesmo depois de caminhar horas e horas no shopping, sempre encontro alguma coisa que está faltando e que me faz voltar e recomeçar a saga consumista.



De posse de poucos cartões de crédito na carteira para evitar excessos, modelito confortável, Márcia Consumista aceitou o convite do irmão e da cunhada, no seu sábado de folga, para acompanhá-los nas suas compras de natal. A minha filha, que pode ser chamada perfeitamente de Gabriela Consumista, arregalou os olhos e pensou intimamente: "Oba, a mãe vai comprar, enfim, algo de natal". Sem a chance de escolher, uma vez que era convidada, fui levada pela determinação deles, e em poucos minutos, a família brasileira foi às compras no sábado à tarde em algum shopping de Porto Alegre.



Toda a cidade teve a mesma idéia. O shopping estava lotado, intransitável, impensável. A torcida inteira do Grêmio e do Inter resolveu ir às compras naquele dia,  naquele shopping,  naquele horário. O que todo o Brasil sabia. Até nós, mas creio que havíamos esquecido. Tinha fila para o estacionamento. Fila para sair do estacionamento e entrar no shopping. Fila para beber um refrigerante. Fila para disputar uma mesa na Praça de Alimentação. Fila para o banheiro. Fila para olhar a vitrine. Fila para a escada rolante. Fila para o caixa eletrônico e fila, acreditem, até para sentar e descansar.



Márcia Consumista não acreditou no que estava vendo e foi se encolhendo. Desesperada. Encurralada. Sem ter como fugir. Desde que quase foi linchada no Estádio Olímpico, no início da década de 80, porque ousou enfrentar a torcida colorada vestindo a camiseta do Grêmio, pegou um pavor de lugar cheio. Nem mexeu na carteira. Até ensaiou o primeiro ato. Sabem como é. O velho vício falou mais alto. Depois de 40 minutos no caixa para aproveitar as cinco vezes sem juros, Márcia Consumista deu-se por vencida. Nem o espírito natalino vale tanto sacrifício.



Para desgosto de Gabriela Consumista que viu se perder na imensa fila a sua chance de ganhar um presente da irredutível mãe, desta vez bem perto de assinar ficha na FIC. Vencida totalmente pela multidão que se acotovelava nas escalas rolantes, nos banheiros, nas lojas de fast food, Márcia Consumista não gastou um mísero real, não colocou nenhum carnê na bolsa e saiu do "centro de consumo" com sua lista de presentinhos intacta. Se ainda acalentasse a idéia de trocar "lembrancinhas" com seus familiares, teria que voltar em algum horário de menor movimento.



Mais tarde, em casa, refeita e relaxada, Márcia voltou a lembrar daquelas cenas horripilantes. Tudo se encaixava num filme de terror. Faltava apenas o morto. A cena da perseguição. O restante dos ingredientes estava ali. Crianças chorando, pedindo brinquedos, mães histéricas sem paciência puxando os filhos sem a mínima pedagogia, pais reclamando que seus filhos não obedeciam, maridos e namorados e amantes enjoados com o vai-e-vem de suas respectivas, idosas se arrastando com seus passos lentos quase sendo atropeladas. Ah, ia esquecendo. Os adolescentes e suas tribos caminhando cheios de malandragem.



Jamais contra o consumo. Jamais contra o ato simbólico que representa dar presentes no Natal (alguém lembra?). Jamais contra o incremento nas vendas do comércio nesta época. Jamais contra o reaquecimento da economia. Não poderia. Pelo primeiro ano em muitos de que se recorda, Márcia Consumista perdeu a hora certa das compras. Momento que exige tranqüilidade e sossego. Final de novembro. Início de dezembro. Antes de toda a cidade. Talvez isso justifique a estranheza daquele cenário. Não havia definição melhor. O shopping, naquele dia, parecia a sucursal do inferno.


Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

Comentários