Dever de casa

Deve-se sorrir porque o sorriso é a única cauda que temos. Deve-se dar risadas para não ser solene. Dá uma trabalheira danadaengomar as atitudes …




















Deve-se sorrir porque o sorriso é a única cauda que temos.

Deve-se dar risadas para não ser solene. Dá uma trabalheira danada
engomar as atitudes ou fazer vinco no entusiasmo.


Deve-se gargalhar porque não existe eco melhor no vale de lágrimas.


Deve-se achar graça a qualquer preço, sobretudo porque a carestia
não vai de orelha a orelha.


Deve-se rir sem motivo porque nada é tão motivacional.


Deve-se aproveitar tudo que existe de engraçado neste mundo, nem
que seja invenção nossa.


Deve-se soltar gaitadas pelo simples fato que é mais fácil que acordeões e sanfonas.


Deve-se estocar risos para os tempos de piadas magras.


Deve-se buscar o risível porque de outra forma ele passa pela gente sem nos reconhecer.


Deve-se rir antes de dormir, para acordar com vestígios dele na cara.


Deve-se rir porque as desgraças vêm e vão, vêm em vão, vêm nos vãos, vêm nos vaus, vêm em vans, vêm nos ver, e um dia ficam.


Etc.





Nas artes plásticas cabe tudo, desde o incabível até o descabido. O que cai como luva de mil dedos no Junior Lopes. Para esse inquieto cartunista e caricaturista goiano-paraense-paulistano, não teria cabimento ficar só no risca-rabisca.

Caberia tentar técnica inédita para retratar, ousar não ser apenas mais um retratista? Como se vê nos seus retratos com retalhos, coube. E mais: nesses remendos, Junior Lopes avizinha a arte têxtil das artes gráficas. A maior parte do que ele cria começa em tecidos e acaba quase tudo em páginas.


Como ilustrador original, inaugura algo híbrido. Cabem perguntas: ainda é desenho? Ou já será tecitura? Seja o que for, o resultado fascina. Como surpreende o processo. Só vendo, como já vi: em vez de riscos, fiapos; no lugar de traços, trapos; como manchas, estampas. Simples e funcional assim.







E embasado, também: por trás das criações, há retinas bêbadas de contracultura, viciadas nos códigos de signos e aliviadas pelo colírio da cultura pop. Coisas mal vislumbradas nas texturas. Mas que deslumbram: você se aproxima, vê só panos; se afasta, aí avultam ícones culturais.
Nada mais gestaltiano.


Voraz consumidor visual, há, no imaginário cult de Junior Lopes, gestações inimagináveis. Enquanto rasga, recorta e retalha, ele se aventura em busca imagística que, por ser feita de pedaços de incertezas, só o prazer aflitivo da fruição lhe é garantido.


Até que os restos de rostos se rearranjam numa fisionomia única. Instintiva e intuitivamente - isto é, com um olhar que sabe onde pisa e com outro que nem quer saber onde é o chão - Junior Lopes logra o gozo de configurar outro ídolo genial. Essa é a sua vertigem, diz ele. O nosso assombro, digamos.






Ah, não mencionei nenhuma tesoura? Acessório ordinário em meio ao extraordinário.


(Apresentação da exposição Rasgos de Genialidade, de Junior Lopes,
no Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo, aberta até 14 de julho, de terça a sábado, na Andradas, 1223. Junior Lopes ainda participa da 6ª Semana de ArteTêxtil de Porto Alegre com o workshop Retratos em Retalhos.)





(Colaboração para o blog Solda Cáustico)

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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