É preciso desarmar as almas

Contra toda e qualquer forma de violência, até mesmo um tom de voz mais elevado, desde as primeiras informações sobre a realização do referendo …


Contra toda e qualquer forma de violência, até mesmo um tom de voz mais elevado, desde as primeiras informações sobre a realização do referendo da comercialização de armas no País no dia 23 de outubro, já havia decidido pelo sim. Até então, ao depositar o meu voto na urna, estaria eu querendo dizer sim à volta das conversas despretensiosas com os vizinhos nas calçadas, sem o medo que nos tranca em casulos hoje em dia; sim ao retorno das caminhadas nos finais de tarde das ruas de um Porto não muito alegre; sim ao chope sorvido com prazer nas mesas de bares expostas nas calçadas sem temor de assalto.


Mas, no final de semana, a minha certeza foi brutalmente atingida por disparos vindos de notícias da mídia que nocautearam, provisoriamente, a minha segurança. Na sexta-feira, ao sair da redação do jornal, deixei colegas tentando desvendar o mistério da morte do sindicalista de Igrejinha. Jair Antônio da Costa, torturado, asfixiado e morto, após uma manifestação pacífica contra o desemprego do setor calçadista, em circunstâncias mal contadas e nebulosas. Sabe-se que ele não estava armado (sim ao desarmamento). Ops, armas de fogo ou não, cacetetes e golpes de quem deveria lhe prestar segurança parece que entraram em ação.


A minha filha assistindo ao jornal comigo perguntou o que o sindicalista havia feito. E eu, evitando ser parcial, disse-lhe: "Vai ler os jornais do final de semana que as reportagens explicam bem". Passou um tempo e ela volta com seus olhos claros esbugalhados e cheios de questionamentos e começa a desfiar uma lista de perguntas. Antes que eu passe a responder, o locutor com voz grave anuncia: "A seguir, violência contra torcedores colorados". As cenas, que dispensam comentários pela sua crueldade, são dignas de figurarem no livro dos recordes das atrocidades cometidas pelos seres humanos.


Na seqüência, a propaganda oficial do referendo da comercialização de armas, da frente a favor do desarmamento, com depoimentos de artistas e intelectuais ressaltando que vão levantar as suas vozes para ver o Brasil ser feliz e confirmando o voto no sim. E, rápido, antes que Gabriela faça a pergunta inevitável (quem vai desarmar o pessoal da segurança que bateu nos torcedores?), digo que é tarde, é hora de dormir, amanhã tem aula, sonhe com os anjinhos. Enquanto ela dormia, a pergunta não me abandonou e a voz do Chico Buarque dizendo quantas Bárbaras, Carolinas e Ritas ainda vão chorar a morte de seus filhos me perturbou.


Na segunda-feira, ao abrir minha caixa de e-mails, qualquer semelhança com o final de semana terá sim sido mera coincidência, encontro uma mensagem de um amigo a quem prezo muito com 10 razões para votar a favor do desarmamento. Todas elas perfeitamente sincronizadas. Que o Brasil já tem armas demais e que 90% delas estão em mãos de civis, que as armas foram feitas para matar, ter armas em casa apenas aumenta o risco e não a proteção, uma vez que usar armas em legítima defesa só dá certo no cinema. No mesmo e-mail, o amigo diz que a presença de uma arma pode transformar qualquer cidadão em criminoso.


No extenso Boletim de Ocorrência a favor do desarmamento, ele ainda citou que as armas de fogo transformam desavenças banais em tragédias irreversíveis; que em caso de assalto à mão armada, quem reage com arma de fogo corre mais risco de morrer; e que controlar as armas legais é uma forma de ajudar na luta contra o crime. Confesso que estava me sentindo numa total encruzilhada, devidamente fermentada pela entrevista desastrosa dada pelos responsáveis pela (in)segurança pública no Rio Grande do Sul, que tantas outras cenas vexatórias têm produzido nos últimos anos.


Para descansar um pouco as idéias, cruzei pela sala e encontrei um CD novo (???) que minha mãe comprou dos Golden Boys (alguém com mais de 30 já ouviu falar?). Que mal tem? Tudo conspirava contra a minha primeira decisão. A música começa: "A mão que toca um violão, se for preciso faz a guerra, mata o mundo, fere a terra, a voz que canta uma canção, se for preciso canta um hino, louva a morte?.". Se a Gabriela perguntar se já sei como vou votar no referendo do dia 23, direi: a favor de desarmar as almas, os corações, os sentimentos, as palavras, os sonhos.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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