Inquisição ? O Porco Ofício

Leio Inquisição – O reinado do medo, do Toby Green, editora Objetiva, sobre os usos e abusos do dito Santo Ofício na península ibérica. …

Leio Inquisição - O reinado do medo, do Toby Green, editora Objetiva, sobre os usos e abusos do dito Santo Ofício na península ibérica. Espanha e Portugal não queimaram bruxas, ao contrário do resto da Europa. Tinham à mão judeus e muçulmanos convertidos. Muito melhor, politicamente, inventar um inimigo interno que uma que outra bruxa isolada. Muito melhor mesmo: assim os inquisidores puderam se soltar. Na inquisição medieval, se o cara confessava o pecado e se arrependia, era solto. Sua alma tinha sido salva. Pra torturá-lo, o inquisidor precisava de duas provas de culpa e a recusa do preso de confessar. Na Espanha, se partia direto pra tortura e se torturava até mesmo depois da confissão. Como disse um inquisidor, num discurso pra animar uma queima em praça pública, tudo aquilo não era pra salvar a alma do pecador, mas pra dar exemplo pro povão. Um juiz civil era punido se um torturado perdesse um membro ou morresse. Com o inquisidor não acontecia nada, sem falar que muitas vezes ele ainda ficava com os bens, a mulher e as filhas bonitas do sujeito.
Santo Ofício
Lembremos o que o Ernesto Sábato disse: as palavras começam sendo escritas em maiúsculas e acabam entre aspas. Isso nunca foi tão certo quanto neste caso.
Confissões
O inquisidor pedia a verdade, quer dizer, a denúncia de outros hereges. Se o torturado defendia alguém, nunca era acreditado. Só as delações valiam. Uma sinuca de bico, já que o sujeito não sabia do que era acusado nem por quem, nunca. Depois tem gente que acha estranho O processo do Kafka.
Casos espantosos
Há dezenas de casos espantosos, claro. Mas um me chamou mais a atenção, acho que porque mostra bem claro a lógica da Santa Madre Igreja: um menino de doze anos foi estuprado pelo cunhado, aí foi torturado pelos inquisidores até confessar. Em seguida, foi pra fogueira. É que se você não denunciasse o abuso até um dia depois, no máximo, passava a ser culpado também.
Sei que há muitos padres que são boas pessoas. Mas diga lá: o que leva uma boa pessoa a se filiar a uma instituição que tem um passado desses e um presente, digamos com moderação, pouco limpo?
Romance policial
Raphael Montes, no Blog da Companhia, lamenta a existência mambembe do romance policial no Brasil. Até aí compartilho o lenço que seca as lágrimas dele. Mas Raphael apresenta velhos e inócuos argumentos, na tentativa de explicar nossa deficiência.
Romance policial é coisa urbana, daí que só o Rio de Janeiro e São Paulo estão habilitados, como se Porto Alegre, Curitiba e Belo Horizonte, só pra dar três exemplos, não tivessem agências de detetives particulares em ação, sem falarmos da polícia. Vou mais longe: até Sananduva e Espumoso do Sul têm polícia. Ora, até Turvo, Ermo e Sombrio têm polícia. E me lembro de ter lido mais de um romance policial que conta uma história que se passava na zona rural, começando por A sangue-frio, do Truman Capote.
Outra papagaiada: a péssima impressão causada pela polícia entre nós. A polícia causa uma péssima impressão na Argentina, na Espanha, no México e na Itália, por exemplo, e há por lá um punhado de escritores policiais em ação. Mas nem preciso lembrar disso. Pegue clássicos da literatura policial: Hammett e Chandler. Eles pintam uma polícia das mais escrotas. Mais ainda: e o que fazer com as centenas de livros policiais em que não há um só policial, nem mesmo um guarda de trânsito?
Já cansei de ler artigos como esse. Alguns são mais espertos que outros, mas em nenhum, nunca, encontrei o argumento que deveria encabeçar a lista: nós, brasileiros, somos ruins de enredo. Nós não sabemos contar direito histórias complicadas. Nossos melhores livros têm enredos mínimos, vide Dom Casmurro, vide Quincas Borba, vide A paixão segundo G. H.HH Quando há um ensaio de enredo, como em Grandes Sertões, temos um travestismo que seria duro de engolir mesmo numa comédia romântica. Na área especificamente policial, um Rubem Fonseca tem alguns contos perfeitos, mas não conheço ninguém, fora resenhistas, que não achem chutados os romances dele.
Claro que as vantagens de um enredo são traiçoeiras. Como dizia o Borges, Chesterton tem tramas melhores que Stevenson, mas Stevenson é um escritor muito melhor e muito mais interessante. Só que isso não liquida com o fato de não termos autores como Scott Turow, por exemplo, capazes de tramas complicadas e convincentes ao mesmo tempo. Se existe algum, me avisem.
Agora, por que não sabemos contar direito esse tipo de história? Vamos lá pessoal, mexam-se, façam suas apostas. Ei, historiadores, sociólogos, psicanalistas, críticos literários. É com vocês mesmos que estamos falando. Saiam da praia, esqueçam a água de coco por uma hora e vão trabalhar, seus vagabundos!
Por falar em más histórias
Luiz Alfredo Garcia-Roza ganhou até prêmios com seu primeiro romance policial, O silêncio da chuva. Conheço um monte de gente que adorou. Eu, como sou do contra, torci o nariz. A prosa do Garcia-Roza é a velha sopa de serragem, mas, se a história contada fosse boa, eu relevava. Só que não consigo levar a sério uma história em que um cara se mata pra incriminar alguém. E olha que ele não tinha um câncer terminal ou algo assim pra justificar o tresloucado gesto. Nem dona Agatha Christie, rainha de forçar a mão, teve peito, que eu saiba, de propor uma idiotice dessas.
Li os dois livros seguintes do Garcia-Roza. A prosa continuou a mesma e os enredos me pareceram sem pé nem cabeça. Mais: o delegado Espinosa não descobre nada, nunca. Os casos se resolvem sozinhos. Isso seria ótimo se se tratasse de uma sátira, não?

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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