Não vou poder calar meu coração

"Ninguém vai me dizer o que senti. Queria ter a carta natal do universo e ver se entendia alguma coisa. O que espero da …

"Ninguém vai me dizer o que senti. Queria ter a carta natal do universo e ver se entendia alguma coisa. O que espero da minha vida. O que quero na minha vida". Os versos acima fazem parte de uma música feita em parceria por Renato Russo e Leila Pinheiro, só descoberta após a morte do vocalista da Legião Urbana, e se enquadram perfeitamente no meu jeito de encarar a vida esta semana. Não sei se foi o tempo chuvoso, a obrigação de pular cedo da cama com o clima frio, o ritmo alucinante que já me envolveu no retorno à redação do jornal ou simplesmente porque descobri que "não falo pelos outros, só falo por mim".


Tantos ingredientes apetitosos me levaram a escutar novamente muitas vezes a mesma faixa do CD póstumo "Renato Russo Presente", sempre voltando para a canção "Hoje", até detectar a minha identidade com a música. Finalmente descobri, para alívio dos vizinhos, já que ouço som no mais alto volume. Estou alimentando, nos últimos dias, uma saudade mansinha querendo me lembrar que sou feliz. E aviso aos invejosos de plantão (que esta "categoria" existe desde que o mundo é mundo): não adianta olho grande para cima de mim que eu não acredito na maldade do ser humano e vou despachando que esta felicidade não te pertence.


Não nego que enfrentei um período desanimador (coisas de saúde). Mas, poderia ter sido pior. No meu pit stop forçado que me expulsou do jornal, do convívio diário com as pautas e com os colegas, tive o apoio amplo, geral e irrestrito de minha família (mãe, irmão, irmã, cunhada e sobrinhos). Nossa, vocês não sabem como a minha família é essencial e importante na minha vida. Sempre contei com o carinho da minha filha Gabriela Martins Trezzi, meu sopro de vida. E também contabilizei inúmeras demonstrações de afeto do pessoal do Correio do Povo, do meu povo antigo da Prefa e de outras tribos de amigos.  


Ao contrário de muita gente deste Brasil ainda miserável, tive dinheiro para comprar os remédios e seguir o tratamento. Ao contrário de muita gente deste Brasil informal, voltei para o meu emprego com carteira assinada. Ao contrário de muita gente humilde que dorme enroladinha se protegendo da chuva com papelão em terrenos baldios deste Brasil sinônimo de injustiça, eu tenho um teto para me abrigar, uma cama confortável, com lençóis macios e um cobertor quente. Ao contrário de muita gente sem talento desse Brasil sem oportunidades, consegui retomar, com sucesso, minhas atividades impressas (concordem, please).


Por isso, deixei de lado esta pobreza daqueles que insistem em julgar e explicar. Não vou poder calar meu coração. Respiro felicidade porque estou viva. E isso supera tudo. Readquiri uma parcela da minha saúde, reencontrei meu trabalho, sobrevivo com meu salário, compartilho com meus amigos de todas as épocas, voltei a torcer pelo meu time imortal, retomei as minhas poesias e a vontade de gargalhar horas e horas nas mesas de bar, reaprendi o valor de saborear cada minuto e a conviver com as limitações. Mas, principalmente, acho que sou feliz e não estou feliz. Talvez porque a cada novo amanhecer, desperte com a certeza de que amo mais e mais a minha família e minha filha Gabriela. 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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