O campeão do ódio

Li que tem gente indignada porque a cela em que trancafiaram Lula tem banheiro. Parece que um balde já seria um privilégio inaceitável. Pensei na hora: Lula é o campeão do ódio. Sim, é chute - não sou um especialista em ódio e não tenho nenhum historiador ou sociólogo por perto pra perguntar. Mas então fiz rapidamente uma listinha de pessoas desprezíveis e não achei ninguém que alcance nem um terço do ódio dedicado a Lula.

Filinto Müller e Sérgio Paranhos Fleury, por exemplo. Talvez familiares de pessoas trucidadas por eles odiassem-nos. A população em geral, fora medo, sentia repulsa. A imprensa não fez campanha contra eles. Até elogiou.

Ao pensar em Müller e Fleury, não dá pra não pensar em Bolsonaro. Sim, um energúmeno, folclórico ainda por cima. Podia ser um dos Trapalhões ou aluno na Escolinha do Professor Raimundo. Mas ele é cheio de ódio, coisa que desperta ódio. E se ele chega ao poder, como é que fica? Porque pode passar do palavrório à ação. Mas será páreo em matéria de atração de ódio?

Entre os ditadores, fiquemos com Costa e Silva. Houve algum ódio, fora de pequenos grupos? Tem gente que até hoje acha que tinha cara de bom velhinho, ou de cantor de tango e bolero na zona. O fato de seu governo ser responsável por grandes atrocidades não mexe com muitos. Fora, claro, com os admiradores de quarteladas.

Quer dizer, mesmo gente responsável por mortes e torturas não mereceu o ódio que se devota a Lula. Por quê? Será que uma campanha diária e por anos da mídia faria a diferença? Temo que mortes e torturas não sejam um ingrediente que comova muitos bananenses.

Vamos pra outro patamar, então. Isso mesmo, a corrupção. Isso mesmo, devia estar abaixo de morte e tortura, mas a moral tem lá suas idiossincrasias no Bananão. Esses dias recusaram um habeas corpus a um homem de 72 que roubou dois pacotes de pregos no valor de R$ 8,40. O médico Roger Abdelmassih, acusado de 52 estupros, conseguiu facilmente um HC. Enquanto isso, STJ reduz condenação do Itaú de R$ 160 milhões para R$ 160 mil sem que ninguém bata nem caneca, quem dirá panela.

Aqui a lista é vasta, mas fiquemos com FHC, Serra e Aécio por um motivo simples: a imprensa não toca neles. Embora haja muita informação disponível, os grandes jornais e as tevês, com a Globo à frente, não dizem nada, ou dizem muito pouco, às vezes notinhas escondidas praticamente entre anúncios classificados, às vezes manchetes marotas, que dão a entender o contrário do que a matéria diz em duas linhas perdidas entre longos parágrafos de papo furado. Daí que fica difícil pra população em geral poder dedicar, nem digo ódio, mas cara feia a eles.

Isso causa distorções que só os cientistas políticos mais atilados desembaraçam. Veja o Maluf, por exemplo. Um monstro da corrupção, o que não o impediu de desfrutar leve, livre e solto por anos de seu butim, que, suspeito, vale mais que dois pacotes de pregos e será deixado de herança pros filhos. Mas, se vamos medir o caso de Maluf em termos de grana e cinismo, perde feio pro Serra, considerado por muitos jornalistas o campeão em matéria de corrupção na política. A única punição que Serra sofreu foi uma bolinha de papel na careca, bolinha devidamente transformada em arma de destruição em massa pela grande imprensa.

FHC, com o ego ferido pelo prestígio internacional do Lula, até causa pena. Não o amam nem o odeiam. É um bosta que, contraditoriamente, não fede nem cheira. Serra, personagem perdido da Família Adams, idem.

Já Aécio tem mais potencial pro ódio. Ele mesmo gosta de odiar e decepcionou tanta gente ao se deixar pegar. Porque é evidente que sabiam quem ele era. O crime foi se deixar pegar, obrigando assim aos Huck da vida a tirar suas fotos alegres em festas das redes sociais e sumir com vídeos de apoio que beiravam a canonização. Mas ao primeiro tranco o garoto de ouro da Globo e da Polícia Federal virou um farrapo. É o típico fulano que fala grosso se o irmão maior está por perto - perdão, irmã, no caso. Mais uma vez o sentimento de desprezo vence de longe o de ódio.

Outro com potencial de ódio é Sérgio Moro. Como Aécio, ele odeia. Além disso, tem cara de que foi gozado pelos colegas na escola e não superou a coisa até hoje. É birrento, tem chiliques quando contrariado e sorri servil diante de personagens abjetos como Temer. Segundo o professor e sociólogo Aldo Fornazieri, seus processos seguem métodos nazistas. Mesmo com o apoio da grande mídia ele conseguiu, por seus próprios méritos, despertar não ódio mas uma antipatia acima do normal em muita gente. Com dois ou três meses de grande mídia dando uma geral nas violações da lei que cometeu, ele não sairia na rua de medo. Mas uma figura tão pequena duraria na berlinda?

Mas pra se pensar no ódio a Lula, devemos deixar o bestiário de lado e pensar em algum personagem da esquerda que possa ter mexido com os brios da elite e da classe mérdia. Brizola? Só consigo pensar no Brizola. Bateram muito no Brizola, disseram o diabo do Brizola. Até usaram a filha dele pra desmoralizá-lo. Mas Lula segue com a medalha de ouro do ódio, ou não? Lula é odiado até por quem não tem motivo nenhum pra odiá-lo, pelo contrário, deveria ser grato, mas caiu na lavagem cerebral da mídia - mídia que dedica a Lula uma campanha que eu não sei se foi dedicada a alguém com esse nível de ferocidade, duração e canalhice.

Lembro o tempo em que Lula se candidatou à presidência pela primeira vez. O argumento contra mais batido era: como que um analfabeto e cachaceiro podia ser presidente? Claro que outros alfabetizados, mas burros e chegados num pó, podiam. Lá pelas tantas, Lula foi eleito e esse pessoal ficou à espera da cagada monumental. Pois não é que o analfabeto, apesar de todas as dificuldades que levou pela proa e apesar de todos os erros que cometeu, fez um governo infinitamente melhor do que o de todos os doutores que vieram antes? Pois não é que o desgraçado ganhou o respeito do mundo?

É isso. Lula provou que a elite ou é incompetente no governo ou lixa-se, só quer o seu. Querem uma frase? A senzala deu uma lição na casa grande. É ou não é motivo pro ódio mais profundo? Lula é um péssimo exemplo. É por isso que tem de ser esquartejado o quanto antes. É por isso que cada membro deve ser pendurado o mais alto possível e aparecer em horário nobre na Globo cheio de varejeiras.

Na escola, sempre me disseram que o Bananão é habitado por um povo pacífico e ordeiro. Agora eu sei por quê.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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