O crime de ser mulher

Não bastava sangrar todo o mês. Nem reclamar de cólicas menstruais, espinhas e outros efeitos colaterais. Não era suficiente a preocupação com a falta …

Não bastava sangrar todo o mês. Nem reclamar de cólicas menstruais, espinhas e outros efeitos colaterais. Não era suficiente a preocupação com a falta de sangue mensal. Muito menos os dias e dias de angústia até a regularização do atraso ou a confirmação de uma gravidez, planejada ou não. A vida já não era complicada ao extremo se a mulher necessitasse acumular a jornada de trabalho, funções domésticas e obrigações maternas. Em muitos casos, ainda responder pelos papéis paternos. Depois de uma idade avançada, sofrer com os sintomas da maturidade feminina, suores, calafrios, alternância de humor e outros. E sorrir.
Como se tudo isso não representasse um fardo complicado para o sexo feminino, ser mulher parece que agora também é um crime inafiançável. Nunca tantas mulheres foram mortas. Nos últimos dez anos, no Brasil, dez mulheres foram assassinadas por dia. De 1997 a 2007, 41.532 mulheres morreram vítimas de homicídio, ou 4,2 assassinadas por 100 mil habitantes. As taxas são mais altas do que as verificadas na maioria dos países europeus, que não ultrapassam 0,5%. Os dados integram um estudo inédito do Mapa da Violência no Brasil 2010, do Instituto Zangari, e foram divulgados por jornais do centro do país.
O crime cometido pelas vítimas é de gênero. Paga-se com a vida por ser mulher. Independe de faixa econômica ou social e do grau de educação. Morre a Aparecida num barraco do morro porque não aprontou a refeição do seu homem na hora exata. É assassinada a Elisabeth de sobrenome pomposo e moradora de zona de IPTU caro porque decidiu se separar do marido. É morta a Débora porque entendeu que queria retomar a profissão, contrariando o namorado.
Morrem mulheres nas vilas, nas avenidas e nas cidades pequenas. Morrem mulheres ricas, pobres ou em ascensão social. Morrem mulheres lindas, magras, gordas, mães, filhas, namoradas, estudantes. A mulher que tira o pó da casa, limpa o chão e se debruça no tanque para lavar roupas, pode ter o mesmo fim que a mulher executiva, que se equilibra no salto alto e fino, entre reuniões e reuniões de negócios. A morte estúpida. A morte torpe. O estampido de um tiro. A dor de uma enxada. A marca de um pescoço estrangulado. A vida interrompida assim, cruelmente.
Estas meninas, estas adolescentes, estas senhoras, respondem pelo crime de ser mulher. E gostar. E se orgulhar deste sexo. E tapar seu sexo com modelitos das últimas tendências em Paris. E desnudá-lo num casebre do morro ou na cama forrada de lençóis de cetim da classe A. Elas cometeram o crime de desfilar pelas ruas, escolas, faculdades, repartições com o cheiro de mulher. Elas cometeram o erro de gostar de menstruar, de engravidar, de se enfeitar, de requebrar, de seduzir e ser seduzida, de dizer sim e não. Ah, maldito delito de ser feliz. Ah, benditas as mulheres.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

Comentários