O sarau é legal

Cresci e fiz minha educação certo de que a leitura era um prazer solitário - não exatamente como aquele que você aí já pensou com malícia. Cinema, show, teatro, exposição, concerto são experiências artísticas por princípio compartilhadas com outras pessoas, de caráter gregário, comunitário. Ler, porém, é viagem íntima, exige concentração e algum ensimesmamento. Podemos falar sobre livros com os amigos, como conversamos a respeito de filmes, músicas, peças - mas em geral não sentamos ou paramos ao lado de alguém para juntos lermos um romance. Para mim, o mais próximo dessa comunhão pública em torno do texto sempre foi a Feira do Livro de Porto Alegre - façanha, aliás, que serve de modelo a toda terra e cuja brava 63ª edição está aí na praça.

Mas eis que surge em 1999 o Sarau Elétrico para confrontar certas percepções confortavelmente naturalizadas. A despeito de esporádicas manifestações aqui e acolá, sarau era há muito uma peça de museu, curiosidade nostálgica com sabor de salão de burguesia letrada, meio fora de moda desde a Semana de 22. A própria palavra soava anacrônica. Tradição entre nós então quase esquecida - além de reprimida pelos muitos governos autoritários que conhecemos -, a própria leitura pública de trechos de obras por seus autores ou outros oradores, em locais como escolas, auditórios e teatros, também tornara-se uma prática rara. Pois a turma que há 18 anos se aboleta em bancos altos nas noites de terça-feira no Bar Ocidente reinventou por aqui esse antigo hábito. O Sarau Elétrico recuperou o ecumenismo latente da literatura e dessacralizou o ato de ler ao promovê-lo no ambiente de uma casa noturna, generosamente aberta a qualquer público, no qual os clássicos universais e a produção escrita contemporânea alternam-se entre copos de cerveja e taças de vinho, em descontraído clima pop e camarada.

Não bastasse completar a maioridade, fato por si só meritório, o Sarau Elétrico fez escola, inspirando eventos semelhantes não apenas na capital gaúcha, mas também no Interior e mesmo fora do Estado. O resultado é uma popularização do debate literário nas últimas duas décadas, em encontros que dispensam formalidades para congregar gente de todas as idades e com as mais diferentes formações - muitos ostentando orgulhosamente o antes quase pedante nome "sarau". Nesta última terça-feira, por exemplo, o porto-alegrense poderia comparecer a pelo menos duas opções do gênero: o tradicional Sarau Elétrico e o recente Sarau no Quintal - sem esquecer das muitas atividades da Feira do Livro, claro. Participei da segunda edição dessa nova iniciativa no simpático Quintal Cultural, na Cidade Baixa, bolada pela atriz Deborah Finocchiaro e por Fernando Ramos, criador da FestiPoa Literária. O tema da segunda edição do Sarau no Quintal, cujo subtítulo é Literatura e Improvisos Transcriados, foi a obra do escritor, artista e folclorista catarinense Franklin Cascaes (1908 - 1983).

Essa paixão cidadã pela leitura pública pode não estar se proliferando em Porto Alegre como as cervejas artesanais ou as barbearias hipster. A consistência dessa disposição civil em torno das letras, no entanto, é evidente - e não poderia ser mais oportuna: a reunião em espaços coletivos de pessoas dispostas a ouvir e falar sobre literatura é um vigoroso e necessário contraponto ao atual obscurantismo que gosta de fechar museus, proibir livros, calar debates e queimar bonecos de pensadores. Até o próximo dia 19, a Praça da Alfândega é nossa sede pública e democrática dos livros, de seus autores e leitores. Vá à feira e ao sarau: além de alimentar o espírito, você estará ajudando a deixar claro para os inimigos da arte e da liberdade de expressão que eles não passam de uma lamentável e estúpida minoria com medo da luz.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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