Pago pra rir e pensar

Puizé: quando todo mundo pensava que a simplicidade tinha sumido, vem o Canini e com ela recheia mais de 200 páginas. Para ele e …

Puizé: quando todo mundo pensava que a simplicidade tinha sumido, vem o Canini e com ela recheia mais de 200 páginas. Para ele e suas artes gráficas (quadrinista/cartunista/ ilustrador/caricaturista/chargista), o que vale é não complicar - nem o traço, nem as ideias, muito menos a vida. Seu talento é à prova de complicações: mesmo sem jamais ter ido ao Rio, Canini é o desenhista que abrasileirou o Zé Carioca (e por esse mérito entrou para a galeria internacional dos Mestres Disney). Ainda agora, com mais de 75 anos, produz como um simples guri. Daí a proeza deste álbum, que olha o gaúcho de maneira humanista, apesar das nossas gauchices.
Como todos do tempo do gaúcho a cavalo, Canini monta na nostalgia e esporeia o progresso. Isto é, demonstra com desenhos quanto doi uma saudade campeira, como machuca o êxodo rural. Esta série de cartuns e ilustrações surgiu para a estreia de Canini no blog Tinta China, canal virtual da Grafar. Em meados de 2007, Canini nos entregou uma enxurrada de material. De lá para cá, um jorro incessante de originais para 5 seções semanais, a começar por Pago Pra Ver. Criatividade e produtividade que assombram os fãs.
Assim como é desnecessário GPS pra se soltar no pampa, é dispensável roteiro para apreciar este álbum. Mas há um fiozinho de meada: inicia nos tempos de sossego no interior, segue pela carnificina da Guerra dos Farrapos, acompanha a vida moderna a invadir o meio rural e termina com a gente do campo vindo pro beco sem saída da cidade grande. Onde as barbaridades continuam, insiste Canini.
Outra postura admirável: seu engajamento. Sutil ou delicado, compreensivo ou conciliador, Canini distribui pelas folhas em branco toda a compaixão social de que é capaz, sobretudo na direção de três D: desfavorecidos, desassistidos e deserdados. E sempre surpreende pela inventividade: quando quer encantar personagens diante da paisagem, simplesmente põe o sol aquém do horizonte, tanto ao entardecer como no alvorecer. Nessas cenas (repare na capa) a geografia ganha um aconchego tão natural que nem parece ilógico. Claro, é lirismo.
Sua principal alegoria é a instintiva alegria animal: Canini põe cavalos, cães, bois, vacas e outros bichos a se divertir entre si, como se nem os humanos fizessem assim.  Como diria o mestre Millôr Fernandes: "Os animais não desanimam. Animai-vos.". A vibração de rebanhos contrasta com gente que já perdeu a vitalidade no embate urbano. E mesmo aí, há um compadecimento, que é a razão maior do humor. Sugestiva é a cena da mulher que pressente o avanço do marido. Dá pra imaginar o que passa a coitada.
Com seu traço ora leve, ora denso, Canini faz um rol risível dos nossos piores costumes, aqueles com que a sociedade já se acostumou. Mas o melhor é que Canini combina humor e crítica em doses tão bem mixadas que rir ou pensar é só um efeito do momento: olhe de novo o desenho e a cena se desdobra, a reflexão mais forte que o riso, ou vice-versa. Artistas singulares não precisam enfiar o dedo na ferida. Sua maestria já basta para insinuar a gangrena. Canini aponta isso sem deixar de ser engraçado. Gênio.
(Prefácio para o álbum de cartuns Pago Pra Ver, do meu querido amigo Canini Lançamento IEL/CORAG. Seleção de Rodrigo Rosa/Fabio Zimbres/Fraga, projeto gráfico de Fabio Zimbres, edição de Fraga, loas de Luis Fernando Veríssimo na contracapa. A homenagem ao Canini na 58ª Feira do Livro é 7/11, confira aqui:  http://www.feiradolivro-poa.com.br/programacaof/mestre-canini-55-anos-de-pura-graca E após, às 18h, lançamento na Praça de Autógrafos. Não perca, ou você fica sem graça! )

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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