Que mania de querer ser feliz

Se alguém encontrar, perambulando pelas ruas de qualquer cidade, mesmo que não seja um Porto Alegre, a pessoa que inventou essa mania tresloucada humana …

Se alguém encontrar, perambulando pelas ruas de qualquer cidade, mesmo que não seja um Porto Alegre, a pessoa que inventou essa mania tresloucada humana de querer sempre ser feliz, por favor, me avise. Preciso, com urgência, falar com o(a) autor(a) da proeza que tem conseguido perturbar e interromper qualquer momento mais promissor de felicidade. Mas, atenção, pode ser que tal criminoso(a) tente fugir, desconversar, dizer que não é bem o que você está pensando. Vai argumentar que muita coisa é fofoca de revista, estão denegrindo a sua imagem, não queria provocar confusão (blá, blá, blá).


Muita calma nesta hora. Arrume um jeito literal de enrolar o(a)  réu (a) e me chame, que o resto é comigo. Será a vez do nosso acerto de contas. Olho no olho, compreendeu? Não adianta disfarçar que eu conheço bem estes truques. Onde é que você andava com a cabeça quando decretou que o ser humano tem que querer ser feliz sempre, a toda hora, minuto, segundo? O que você tinha bebido quando determinou que o homem está sempre à procura da felicidade? De que planeta eternamente insatisfeito você desembarcou com idéias tão malucas e com tanto poder para transformar as nossas vidas?


Desde que essa máxima foi inventada não se consegue mais um só instante de felicidade. Você está me desafiando e quer exemplos? Pois, seguem. Se estamos alegres porque o inverno está quase no final e não pegamos nenhum resfriado, não nos permitimos apreciar isso. Logo, vamos proclamar que gastamos na vacina contra a gripe, que tivemos gastrite, enxaqueca, sei lá, ou então, reclamar que não pegamos nada mesmo, que dirá um simples e inofensivo resfriado. E a felicidade passou. Só porque alguém que não batia muito bem da casinha disse que sempre se deve buscar mais e mais e mais.


Que sinistro. Ao conseguir um novo emprego, tão sonhado, é comum ficar, logo de saída, encontrando defeitos pequenos, como dificuldade no transporte, má localização e outros quesitos. Perde a alegria da conquista ao elencar coisas que ainda faltam para a mais completa felicidade. Quando se atinge, por exemplo, uma estabilidade financeira que nos permite viver com tranqüilidade sem grandes ostentações, queremos mais. Já não nos basta um apartamento de dois quartos, um carro popular e dindin suficiente para o lazer dos fins de semana? Normalmente, se começa a pensar mais alto.


E a felicidade foi se embora e é por isso que eu gosto lá de fora porque sei que a falsidade não vigora.  Meu pensamento tá parecendo uma coisa à toa, mas como é que eu consigo voar quando começo a pensar. Você, amado e paciente leitor, não tenha piedade de mim. Não chame o síndico. E nem afaste as crianças. Eu não estou desmiolada. Apenas me apossei (sentimento de posse é um traço forte da personalidade de geminiana) da música do nosso Lupicinio para compartilhar com você um pouco desse enigma sobre a eterna, louca, incessante e angustiante busca da felicidade, mesmo quando ela está ao nosso lado.


Pois bem, vou liberar o(a) criminoso(a). Não serei eu a única a prender os culpados nesse País. Acho que isso nem pode ser classificado como crime de colarinho branco. E nem tenho dados suficientes para instalar uma CPI. Acabe em pizza ou não. Não sem antes confessar que ele(a) transformou o meu curto período de férias em uma excursão para o inferno. De ônibus pinga-pinga, comendo galinha com farofa e passageiro se pendurando com desodorante vencido. Tudo porque ninguém esconde o espanto e o desprezo quando digo que tirei férias para ficar em Porto Alegre descansando e só. Que mal há nisso?


Toda vez que respondi isso, nos últimos dias, senti um olhar velado de compaixão como se eu estivesse escondendo o verdadeiro motivo de não tentar ser feliz e sumir nas minhas férias. Para espanto de muitos, decreto em alto e bom som: foi um dos melhores períodos de descanso. Fui feliz sim. E não queria mais. A mesma felicidade que eu poderia encontrar num paraíso turístico eu consegui lapidar na cidade que amo e que abriu seus braços acolhedores para meu doce sossego.


Fui feliz ao aceitar o desafio de editar uma revista quando deveria descansar e trabalhei um turno. Fui feliz ao passar uns dois dias na casa do meu irmão numa cidade que nem tem shopping (para mim isso é um sacrilégio) e brincar com os cachorros e olhar perdida para o horizonte. Fui feliz ao ficar em casa vendo sessão da tarde e desenhos com a minha filha na televisão. Fui muito, muito feliz, ao ter mais tempo livre para ouvir o que a minha filha Gabriela quer sempre me dizer. Fui feliz ao ouvir, como agora, a chuva batendo na janela do meu quarto e me chamando para o sono dos justos.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

Comentários