Renan Antunes de Oliveira: Polêmica à vista

“Não vai ter perfil do Renan”, diz, de repente, Renan Antunes de Oliveira, em meio à entrevista. “Não vai mais ter perfil. Estou vendo agora que eu fracassei”,

Tânia Meinerz

"Não vai ter perfil do Renan", diz, de repente, Renan Antunes de Oliveira, em meio à entrevista. "Não vai mais ter perfil. Estou vendo agora que eu fracassei", repete, na cara-de-pau, o jornalista que acaba de ganhar o Prêmio Esso de Reportagem, a maior distinção do jornalismo nacional. O prêmio, como tudo na vida de Renan, veio cercado de polêmica. O jornalista levou o diploma pela reportagem 'A tragédia de Felipe Klein', publicada no jornal Já Porto Alegre, veículo no qual trabalha atualmente como repórter e editor da versão online. O jornal é mensal e tem circulação restrita a alguns bairros da Capital, o que causou a fúria de profissionais de grandes empresas de comunicação do País. Esses veículos e seus jornalistas não foram os únicos surpreendidos pela vitória de Renan. O próprio não sabia que a matéria havia sido inscrita na premiação. Seus colegas do jornal fizeram a inscrição num período em que ele havia se afastado da publicação, para ser porteiro de hotel (porteiro de hotel!) na Praia do Rosa, em Santa Catarina.

Quando recebi a notícia de que era finalista, pensei 'Que bobagem, não vai dar em nada'", lembra. Pois ganhou, e na categoria nacional. Por questionarem seu merecimento e a integridade do prêmio, Renan ameaçou renunciar, mas voltou atrás e hoje, irreverente, ostenta o diploma - e suas diversas cópias - na redação do Já. Uma está colada no chão, para que possa pisá-la quando bem entender, outra protegia a mesa na qual a equipe comia uma melancia. Mas o original, claro, está devidamente emoldurado e pendurado na parede.

Incompatibilidade

Renan sempre gostou de fazer as coisas ao seu modo. Decidiu ser jornalista por influência do irmão, Paulo Gérson, de seu amigo Jorge Polydoro, e também da então namorada, Jandira. Em 1974, aos 25 anos, já tinha feito vestibular para Direito, para Ciências Sociais, começado e desistido desses cursos. Então, decidiu ir para a Famecos (Faculdade dos Meios de Comunicação Social). Mas nunca saiu do primeiro semestre. "Havia uma absoluta incompatibilidade entre eu e uma sala de aulas, o mundo acadêmico. A única coisa boa na faculdade eram as minhas colegas", conta. Naquela época, o Ciee (Centro de Integração Empresa-Escola), segundo lembra Renan, fornecia um carimbo na Carteira de Trabalho dos estagiários, que os permitia trabalhar. Como já fazia estágio no Diário de Notícias, não se preocupou mais com o curso. Sua primeira pauta no jornal Renan teve que recolher do chão, onde o editor, que não havia gostado da ordem da direção, a jogou.

Ele a juntou e foi-se para o interior cobrir a mudança de nome de uma cidade: Não-Me-Toque. "Com a modéstia que me caracteriza, achei que a matéria estava ótima, mas quando eu voltei a acharam uma merda, e passei dois dias reescrevendo. No primeiro domingo, ela foi publicada. Mas, até hoje, acho que estava boa desde o início", alega. Depois de um ano, o jornalista deixou o diário, quando se casou com sua primeira mulher, Maria Helena, com quem ficou por seis anos e teve três filhos. Renan esteve casado outras vezes e tem mais dois filhos.

Nepotismo

Maria Helena era filha do então presidente da Eletrosul, o ex-prefeito Thompson Flores, e este o convidou para ser assessor da empresa. Nessa época, Renan era muito perseguido pela ditadura. Tudo porque havia sido preso em 1968, quando esteve envolvido com o movimento estudantil. A sogra, filha de um general, conseguiu garantias de que o Dops (Departamento da Ordem Política e Social) pararia de persegui-lo se ele fosse para Santa Catarina. Então foi transferido para lá, onde ficou por dois anos, até o Dops catarinense resolver persegui-lo também. De volta a Porto Alegre, em 1978, trabalhou por um período no Coojornal, o jornal da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, mas, em seguida, retornou a Florianópolis, para participar da campanha a senador de Jaison Barreto, do PMDB. Com a derrota do candidato, o jornalista, já divorciado, trabalhou no Correio do Povo e no Jornal do Estado, até voltar para a Eletrosul. "Meu ex-sogro me convidou e eu aceitei, mas não fiquei muito tempo, porque vi que não era possível fazer jornalismo dentro de uma assessoria", diz.

"Quero meu salário!"

O Diário Catarinense estava montando sua equipe e Renan foi fazer parte dela. Era coordenador do jornal, junto com Armand Burd. "Eu era o segundo homem da empresa, todo mundo prestava contas a mim antes do diretor de redação. Então resolvemos dar um 'golpe de estado' e organizamos um movimento sindical", diz. O jornalista conta que a RBS queria fazer um acordo salarial, desrespeitando a data-base estabelecida antes da inauguração do jornal. Renan era o encarregado da negociação e não aceitou. Foi demitido e não recebeu seu salário. "Quero meu salário!", ouviu toda a redação, quando ele berrou da entrada do prédio tubular. O grito foi ouvido até que Renan fosse preso. Não havia mais ditadura, era 1987, sua prisão foi repercutida em todo o País e a Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) condenou a atitude da RBS. A empresa tentou se explicar, mas não só continuou sem pagar o salário do jornalista como demitiu outros funcionários ligados ao sindicato. "Resolvi fazer alguma coisa, porque tinha três filhos para sustentar e estava desempregado". Renan voltou para a porta do jornal, se deitou no chão com um cartaz onde escreveu "RBS não paga salário" e continuou gritando. "Dessa vez, não chamaram a polícia. Acharam que ia me cansar". O jornalista não cansou e permaneceu ali por pelo menos duas semanas. "Chegava cedo no prédio e me deitava, quem passava por lá acreditava que eu ainda não tinha ido embora". Quando não estava deitado em frente ao jornal, Renan ia com seu cartaz para o centro de Florianópolis, "até que a cidade inteira começou a comentar que a RBS estaria falindo e sem dinheiro para pagar seus funcionários. Então, a empresa começou a me oferecer dinheiro. Vários salários, dinheiro para passar dois anos sem fazer nada, uma fortuna na época. Que eu tinha direito!", garante o jornalista, que só aceitou o acordo para levantar dali depois que o sindicato o autorizou, em assembléia.

Na rua

Terminada sua jornada em Florianópolis, foi para Brasília, no ano seguinte. Aproveitou para procurar um emprego por lá. Perguntou para um amigo qual era o pior jornal da cidade. "Jornal de Brasília", ouviu. Bateu na porta, se apresentou, fez teste e entrou. Imediatamente, começou uma greve, que Renan, claro, passou a liderar. A direção do diário soube do episódio ocorrido com a RBS e o demitiu na hora. Não queriam que acontecesse o mesmo com eles. Depois, na IstoÉ Senhor, foi demitido por causa do mesmo movimento sindical. Foi para a Justiça do Trabalho, ganhou e voltou. Mas logo já estava na Veja, que o enviou para São Paulo. Para a revista, cobriu a campanha presidencial de 1989, viajando por todo o Brasil. Com a eleição de Fernando Collor, veio o Plano Collor e Renan foi escolhido para representar os colegas na negociação salarial. "Novamente, bati de frente com o patrão. A Veja chamou a polícia e mandou me tirarem de lá", conta. Ele juntou toda a produção feita para a revista e foi para a Europa, tentar vender para os jornais de lá. Não conseguiu e ainda gastou tudo o que tinha. Resolveu ir para Curitiba, onde conseguiu um emprego como diretor de redação do pequeno Jornal do Estado.

Um dia, o jornal foi assaltado e o dono pediu para que Renan escrevesse uma matéria acusando o então governador Roberto Requião pelo crime. O jornalista se recusou, mas a matéria foi publicada, escrita pelo próprio dono. "Mandei tirarem meu nome do expediente, não tinha nada a ver com aquilo. Claro que no outro dia estava na rua de novo, mas toda a redação saiu comigo. É uma das pequenas glórias que carrego", se emociona.

O Carandiru ou a China

Em 1991, voltou para São Paulo, onde preencheria umas férias na TV Cultura. Assumiu o cargo de chefe de Jornalismo, era responsável por todos os programas. Mas não foi o que sentiu quando ocorreu o massacre do Carandiru. Renan mandou equipes para lá e ninguém foi. Editores, repórteres, técnica, todo mundo disse "não" à sua ordem. "Eles diziam 'A televisão é do Estado, a penitenciária também, não vão ir'", indigna-se. O mundo inteiro noticiou o fato, exceto a TV estatal paulista. "Não podia trabalhar assim, fazendo de conta que era chefe", fala. Foi quando ofereceram à sua assistente, Sandra, um emprego de 300 dólares no Ministério do Rádio, Televisão e Cinema chinês, para trabalhar no país. "Eu ganhava cerca de três mil dólares na TV - naquela época, os salários eram bons -, mas avisei que se ninguém mais quisesse, iria eu", lembra. Tentaram dissuadi-lo da idéia, dizendo que o jornalista, então com 43 anos, estava velho para esse tipo de coisa, que o salário era horrível. Mas Renan estava disposto a sair da Cultura. Passou por uma entrevista com os chineses, na qual não entendeu nada, e foi para Pequim. De chinelo de dedo, numa cidade em que fazia 15º negativos.

Maldito no Brasil e na China

Como o salário era miserável, Renan se ofereceu para diversos veículos para mandar matérias da China. Mas ninguém quis saber de contratá-lo, porque seu trabalho em negociações salariais o tornou persona non grata nas redações. Mas um amigo do jornal O Estado de S. Paulo disse que ele poderia ficar tranqüilo, pois compraria suas matérias. Assim, o jornalista pôde se sustentar. Depois, conseguiu publicar algumas também na revista IstoÉ. Com o tempo, seu texto começou a ficar mais crítico em relação ao regime comunista chinês. Mas o grande problema, Renan arranjou com seu emprego de lá. Os chineses têm uma rádio que transmite para o mundo inteiro, em diversos idiomas, e sua função era fazer a versão em Português. "Uma intérprete me passava as mensagens oficiais do partido. Como eu não tinha essa identidade ideológica e ninguém entendia nada, eu dizia o que queria", conta Renan, que certamente dizia o que os chineses não queriam ouvir. Um dia, finalmente, eles perceberam. Então, Renan, que tinha acesso livre na China, pois possuía a carteirinha do partido, começou a viajar. Foi para a Coréia do Norte, para a Rota da Seda, para o interior da China. Mandava as matérias para o Brasil assinadas com os nomes de seus filhos. Os chineses já não estavam gostando de sua permanência no país, quando o jornalista conseguiu uma entrevista com o líder da oposição, Wei Jing Jang, que havia recém-saído da cadeia e só conversou com ele e com o New York Times. Resultado: os chineses disseram que Renan interferiu nos assuntos internos deles e o deportaram. "Eu já namorava a mexicana Blanca, que trabalhava no setor de Língua Espanhola da rádio, e resolvi voltar. Saí da China, mas voltei por outro caminho", conta. Foi aí que foi pego. O governo chinês não concedeu seu credenciamento pelo Estadão, que o jornal havia solicitado, e ainda lhe tirou suas garantias. "De vida", acrescenta. Renan correu para a Embaixada Brasileira, onde afirma ter sido tratado como um cachorro. Mas como não podia ficar na China, porque tinha sido expulso, nem voltar para o Brasil, porque haviam confiscado seu passaporte, resolveu ficar por ali. Se trancou numa das salas do prédio e deu início a um incidente diplomático entre os dois países.

Durante esse período, o Ministério das Relações Exteriores, no Brasil, mandou uma notinha para os jornais, dizendo que o jornalista tinha tido problemas com a polícia chinesa e que o governo brasileiro já estava providenciando sua volta. Renan ficou indignado, queria que ficasse claro o que havia ocorrido com o governo chinês - e não com a polícia - e que era ele quem pagaria seu vôo para fora da China, assim que houvesse condições. "Fiquei 55 dias dentro da embaixada. Uma vez, fui para a porta e me disseram para eu não ficar ali, senão os chineses poderiam me puxar para fora. Me acorrentei no portão para ninguém me tirar de lá. Era uma brincadeira, mas disseram que eu estava louco", se diverte. O incidente só foi resolvido depois que a Fenaj fez uma carta para os jornais brasileiros, nos termos que Renan queria, e um jornalista italiano, da Comunidade Internacional dos Jornalistas, negociou sua saída.

Se arrependimento matasse?

Chegou em Hong Kong com o status de celebridade. "Até a BBC queria me entrevistar, mas não queria virar notícia por causa disso", diz, humildemente. De lá, continuou enviando matérias para a IstoÉ, sobre o Timor, a Tailândia, toda a região, até o dinheiro acabar. Blanca voltou para o México e Renan, para o Brasil, onde se apresentou no Estadão, se oferecendo para fazer matérias na América Latina. Aceitaram, e Renan foi até o México a pé, fazendo suas reportagens. Mais tarde, recebeu o convite do jornal para ser correspondente em Nova York. Aceitou e emplacou a primeira página já de início. Era a história de um assassino brasileiro, que estava preso e ia ser condenado à morte. De lá, também fez outras viagens, como para a Argélia e para o Alasca, onde foi entrevistar o Papai Noel! "Fiquei cinco anos no Estadão até me dispensarem. Ainda me devem 13º, férias?", conta. Quando soube da demissão, Renan chamou a mulher e os dois colocaram tudo na calçada para vender e poder vir para o Brasil. A mudança dos dois cabia numa Kombi e foi assim que eles começaram a viajar de São Paulo para Porto Alegre. Porém, no caminho, Blanca se encantou com a cidade de Curitiba. Renan havia recebido uma proposta para ser chefe de reportagem da Globo, em São Paulo, mas preferiu ficar no Paraná. "Tive o prazer de ligar para lá e dizer 'não, obrigado'. Se arrependimento matasse, eu estava morto!", brada. O jornalista telefonou para a Gazeta do Povo: "Renan Antunes de Oliveira. Me apresento para o patrão. Quero trabalho". O futuro patrão conhecia seu nome, havia lido suas matérias no Estadão e gostava. "Me deram casa, comida, roupa lavada e um puta salário. Mas era a vanguarda do atraso. Uma Zero Hora piorada", comenta. A Gazeta é o principal jornal do Paraná, mas Renan achava que faltavam pautas interessantes. Quando caíram as torres gêmeas de Nova York, resolveu ir para o Afeganistão. O jornal aceitou, mas Renan achou que não conseguiria entrar direto no país, sem trabalhar num grande veículo da mídia mundial. Foi para Paris, depois para o Irã, para chegar no Paquistão. Passou pelos talibãs, atravessou a fronteira, voltou e foi aí que foi preso. No Irã, "que não tinha nada a ver com a história". Passou os 55 dias da guerra preso num hotel. "Estava feito um idiota, assistindo a BBC, enquanto os governos resolviam o caso", fala. Foi liberado porque o governo iraniano percebeu que ele era jornalista, mas Renan perdeu sua câmera e outros pertences. Enquanto estava preso, recebeu outra proposta da Globo. Agradeceu, mas explicou sua situação: Estava "impossibilitado".

Para sair da Gazeta

"O pessoal da Gazeta me adorava, tentei sair de lá algumas vezes, mas o patrão aumentava meu salário, me dava vantagens", conta. Renan também fez muitas reportagens para o jornal das quais se orgulha, mas queria deixar o jornal e começou a fazer palestras para estudantes, nas quais criticava muito o veículo. Suas matérias foram deixando de ser publicadas, até que chegou ao cúmulo de sua cobertura da Guerra do Iraque ser ignorada. "Disseram que não poderiam publicá-las, pois estavam muito simpáticas aos iraquianos, na contra-mão do que a CNN dizia. Mas foi por isso mesmo que eu tinha ido para lá, porque o que acontecia não era a versão da CNN", queixa-se. Deixou o país antes mesmo dos bombardeios começarem e se demitiu. "Ainda tive que chacoalhar o cara dos Recursos Humanos para ele me deixar ir embora", diz.

Salário de fome

Passou um período na Europa, quando trabalhou ensacando alface em supermercado londrino. Sem emprego e sem dinheiro, voltou para Porto Alegre. Ouviu a sugestão de procurar Ibsen Pinheiro, que era secretário de Comunicação do Estado, mas preferiu aceitar a oferta do amigo Elmar Bones para ser repórter do jornal que estava por lançar, o Já Porto Alegre. "Ele, que não tinha nada, me ofereceu esse coisa nenhuma. O salário é horrível, mas eu tava desempregado, morando com minha mãe?", diz debochado, enquanto Bones o observa. Depois de seis meses, resolveu ir para a Praia do Rosa, porque alega que estava passando fome com o salário que recebia. Então veio a notícia do Prêmio Esso e o filho pródigo retornou ao Já. O resto todo mundo já sabe?

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