Eduardo Bueno: Um século em 50 anos

O jornalista, escritor e gremista fanático, que populariza a história através de seus livros, é uma avalanche de ideias, energia, talento e críticas

Peninha - Reprodução

Por Cleidi Pereira

Apesar de toda a ideologia que carrega desde o berço, Eduardo Bueno foi um garoto tímido e introspectivo até os seus 16 anos de idade. Difícil de acreditar, mas o jornalista, tradutor e escritor garante que sim. Tudo mudou em março de 1974, quando Bob Dylan fez com que, finalmente, ele encontrasse sua verdadeira essência no 'Peninha'. Leve, aventureiro e andarilho, este sim nasceu para o mundo, para viver com o pé na estrada, fazer cócegas e voar. Aos 51 anos, Eduardo Bueno, o Peninha, é uma avalanche de ideias, energia, talento, críticas? Enfim, vida!

Já experimentou o mundo e diversos tipos de drogas, escreveu 25 livros, vendeu um milhão de exemplares, ficou milionário e, em seguida, a falta de organização fez com que seu dinheiro evaporasse. Contudo, o polêmico e verborrágico geminiano acredita ter ainda muitos livros para escrever e lugares para conhecer. Dono de uma boa memória e de uma narrativa que prende a atenção, não há como não se impregnar com o estilo 'Peninha', leve e acelerado, de levar a vida. Durante a entrevista em sua casa-escritório repleta de discos, quadros, bonequinhos, carrinhos, livros, pequenas esculturas e móveis antigos, ele formula diálogos, contextualiza, troca e retoma assuntos com muita facilidade.

Ao longo de sua carreira como jornalista, registrou passagem por órgãos de imprensa como Zero Hora, O Estado de S. Paulo, TV Globo, Revista Manchete, TV Cultura e TVE-RS. Como escritor, traduziu On the Road - Pé na Estrada, de Jack Kerouac, que impulsionou a literatura beat no Brasil. Também assinou Blá, Blá, Blá - A Biografia Autorizada dos Mamonas Assassinas e a coleção Terra Brasilis, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti em 1999. Como editor, foi responsável pela coleção L&PM/História, que publicou os relatos de grandes viajantes.

Mais gremista do que gaúcho

Bom frasista, é conhecido por declarações do tipo: "Sou gaúcho, mas não exerço. Aliás, sou mais gremista do que gaúcho". As gírias e o sotaque porto-alegrense - com a fala cantada e as vogais esticadas - não escondem suas origens: Peninha nasceu na capital do Rio Grande do Sul no dia 30 de maio de 1958. Deixou o Estado cedo, aos cinco anos, quando a família mudou-se para São Paulo devido à transferência de seu pai, Milton, que era diretor-geral da Sinteko, empresa suíça com sede brasileira em Gravataí.

Com 12 anos, voltou para Porto Alegre notando ser mais "refinado" do que seus colegas de escola e percebia, assim, um povo beirando à selvageria. "No colégio, eu era chamado de paulista e de veado. Por isso, quando vim para cá, me tornei um péssimo aluno." Nesta época, Peninha desenvolveu uma visão crítica sobre a postura de "superioridade" dos gaúchos, a qual mantém até hoje. Porém, reconhece e admira o lado autêntico, sincero e direto ao ponto deste povo. Ele afirma que fala mal de Porto Alegre e dos porto-alegrenses para implicar, mas que, no íntimo, adora a cidade e sua geografia física.

Do lado paterno, além de dois mil livros, herdou o bel-prazer por bebidas e hábitos não-saudáveis. Contra todas as expectativas, o pai boêmio, que, segundo o escritor, fumava e bebia sem muita moderação, morreu em 2006, aos 79 anos. "O que é inacreditável", diz Peninha, lembrando que, desde a sua infância, ouvia o patriarca dizer que não passaria dos 40 anos, mais tarde, dos 50, e algum tempo depois, dos 60. Já sua mãe Beatriz, que abriu uma das primeiras butiques de cama e mesa da Capital, a Relicário, era o oposto do seu marido: regrada, não bebia nem fumava e praticava exercícios com regularidade. Contudo, faleceu aos 67 anos, vítima de um câncer.

Do lado materno, veio a paixão pelo Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Peninha lembra que o pai não era ligado em futebol, mas dizia-se colorado só para provocar. Por coincidência, os pais Milton e Beatriz casaram-se no dia do 50° aniversário do Grêmio. Em julho de 1968, quando ainda morava em São Paulo, veio passar as férias em Porto Alegre e o avô o levou para assistir ao primeiro Gre-Nal de sua vida. O resultado final não poderia ter sido melhor para o então estreante: 4 a 0 para o tricolor.

Hoje, um dos mais fanáticos dos gremistas conhecidos diz colaborar para alimentar intensamente a rivalidade entre Grêmio e Internacional. Às vezes, segundo ele, acaba sendo mal-interpretado. "É óbvio que não sou nenhum selvagem, que não desejo o extermínio - pelo menos não completo e total - do nosso co-irmão." Crítico confesso do futebol-arte (o qual considera coisa de "veado") e admirador do futebol aguerrido, ele é autor do livro Grêmio: nada pode ser maior, publicado em 2005 pela Ediouro. Na obra, defende a tese de que o Grêmio não é um time brasileiro e, sim, uma equipe cisplatina, com ascendência germânica, fibra inglesa e sangue nas veias.

A paixão pelo futebol e pelo Grêmio foi aumentando conforme o time perdia. Nesta parte, Peninha aproxima-se do gravador, eleva o tom de voz e brada: "Tem que ficar registrado que em 11 décadas, 11 décadas, de rivalidade Gre-Nal, o Grêmio ganhou nove! Só perdeu nos anos 40 para o tal 'Rolo' e nos anos 70 para aquele time outro lá".

Traça de biblioteca

Fascinado pelo mundo das palavras desde que se conhece por gente, Peninha cresceu entre as duas mil obras que compunham a biblioteca do seu pai. E foi incentivado por ele que, aos 10 anos, leu seus primeiros livros, os clássicos de aventura do escritor francês Julio Verne e do alemão Karl May. Depois disso, o dinheiro da mesada já tinha destino garantido e a literatura nunca mais saiu de sua vida, que passou a ser dividida por fases classificadas conforme as obras que leu. Assim, ao longo destas cinco décadas passou pelas fases do Egito, dos grandes mistérios da humanidade, da esquerda, do Bob Dylan e da cultura beatnik. Estas duas últimas influências fizeram com que ele ficasse fascinado pela cultura norte-americana, a qual o levou a querer estudar a história brasileira, que o tornou um escritor best-seller.

Seus livros sobre a história do Brasil colonial conseguiram algo incomum no mercado editorial brasileiro: venderam mais de um milhão de exemplares. Entretanto, foi muito antes de lançar pela editora Objetiva os quatro volumes da coleção Terra Brasilis - A Viagem do Descobrimento (1998), Náufragos, Traficantes e Degredados (1998), Capitães do Brasil (1999) e A Cruz, a Coroa e a Espada (2006) -, que Eduardo escreveu suas primeiras palavras em 200 folhas de dois cadernos espirais. "Era uma compilação de todos os livros que li sobre o Egito, como são meus livros ainda hoje. Não passam de compilações!", diz, referindo-se às críticas que recebe.

O deslumbramento pelo Egito era tão grande que ele acreditava (e ainda acredita) ter sido egípcio em uma vida passada. Por isso, quando criança pensava em ser egiptólogo, depois, quis ser arqueólogo. E, durante alguns anos, enchia o peito de orgulho para afirmar a futura profissão: "Serei arqueólogo!" Com o andar dos anos, descobriu não ter habilidade e muito menos paciência para a atividade e, aos 14 anos, decidiu que queria escrever sobre arqueologia e História em jornais. Decepcionado, viu-se obrigado a mudar novamente de planos ao descobrir que as pessoas não eram apaixonadas nem por arqueologia nem por História. "Até hoje não consigo entender isso!"

"Ih, contratamos um Peninha!"

O início de sua carreira no jornalismo foi embalado pela paixão pelo Grêmio e pelas palavras. Aos 17 anos, foi pedir emprego em Zero Hora ao jornalista Fernando Ernesto Corrêa, parente de sua mãe e braço-direito do fundador da empresa, Maurício Sirotsky Sobrinho. Começou a atuar no veículo aos 18 anos como estagiário, quando já cursava Jornalismo na Fabico e, evidentemente, a intenção de Peninha era ser uma espécie de porta-voz do time tricolor no jornal. Porém, para sua tristeza, foi destinado a acompanhar o esporte amador.

O escritor garante que antes mesmo de dar os primeiros passos no meio jornalístico já havia gente determinada a dificultar as coisas para o seu lado. "Fui muito maltratado na Zero Hora por ser o 'filhinho de papai' que foi pedir emprego e que conseguiu por indicação. Ninguém falava comigo. Só me davam ordens." Os longos cabelos castanhos e o jeito atrapalhado lhe renderam o apelido que o acompanha até hoje.

O episódio que originou o codinome ocorreu quando o então estagiário resolveu pedir um pouco da aguardente que ficava escondida na Redação. A contragosto dos colegas, por insistência, pôde servir-se. Mas, ao fazer isso, o jovem desprovido de habilidades manuais quebrou as duas garrafas de vidro e ainda ganhou um corte na mão. Nisso, o jornalista Mauro Boró Toralles proferiu a frase causadora do apelido: "Ih, contratamos o Peninha!" No início, soava como vingança dos colegas, já que o nome referia-se ao avoado repórter homônimo do jornal A Patada, dos quadrinhos da Disney. "Eu era mesmo parecido com o Peninha, mas aquilo me irritou muito - até por ser verdade. Se eu tivesse ficado quieto, não teria durado dois dias."

"Peninha é um personagem que me protege", admite. Uma definição da alcunha que, até hoje, carrega com carinho foi dada pelo amigo Victor Maymudes, que durante 30 anos trabalhou como tour manager do ídolo do gaúcho, o cantor Bob Dylan. "Uma pena voa, faz cócegas e escreve."

Em 1978, enquanto cobria a Copa do Mundo na Argentina, aproveitou o visto que conseguiu para sair do País, demitiu-se de Zero Hora via Telex e foi fazer um tour de quase dois anos pela Europa e pelos Estados Unidos. Mais tarde, em 1992, ele retornaria com Augusto Nunes para ZH. "Para mim, foi o atestado definitivo da mediocridade e da falência do jornalismo gaúcho."

Quando voltou do tour, foi convidado para ser repórter especial da TV Globo, com salário que mensalmente equivalia a um valor superior ao de uma Brasília zero quilômetros, "o melhor carro do Brasil na época", segundo ele. No auge da rebeldia de seus 22 anos, achava a emissora "muito vendida ao sistema" e abdicou de todos os benefícios para atuar na Coojornal, a Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, e "defender a causa" da imprensa alternativa gaúcha.

Com o episódio das bombas lançadas contra bancas que vendiam exemplares da publicação e com a consequente queda na circulação, Peninha foi demitido da Cooperativa. "Nunca fui demitido - a não ser na Coojornal. A situação começou a ficar aflitiva e vieram me dizer: 'vamos fazer um enxugamento e como tu é o único rico e o único que mora no Moinhos de Vento, vai ser tu. Então, na verdade, pediram para eu sair.'", lembra, às gargalhadas.

A pedra rolando na estrada

Escrever sobre Peninha e não registrar a influência que Robert Allen Zimmerman, o Bob Dylan, teve em sua vida é o mesmo que não apontar Deus na biografia do mais fervoroso evangélico. Dylan mudou a vida de Peninha, que traduziu On the road, o livro que mudou a vida de Dylan, que mudou a vida de Peninha. Antes de conhecer a música do cantor e compositor norte-americano, o jornalista diz que sua existência era "totalmente oca, vazia e imprestável".

Considerada uma das canções mais influentes de Dylan, Like a Rolling Stone foi o som que apresentou o cantor ao escritor. Desde então, ele passou a considerar a música como a trilha sonora de sua vida. "Eu ouvi o cara e, bah, aquilo foi como um raio no meu coração, um flash de luz!" Este foi o momento crucial para o então jovem tímido e introspectivo. "Não tinha ímpeto para botar minha opinião para fora, nem para botar o dedo na cara das pessoas."

Depois de Dylan, chutou as pedras do caminho e abraçou a rebeldia: começou a usar brinco, a fumar maconha, ler os chamados poetas malditos, como Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, até chegar à geração beat e descobrir On the Road, livro de Jack Kerouac lançado em 1957, que influenciou Dylan e a juventude dos anos 60, que colocava o pé na estrada e a mochila nas costas.

Aos 23 anos, Peninha traduziu a obra de Kerouac, que foi lançada no Brasil, em fevereiro de 1984, sob o título 'Pé na estrada'. Além de valorizar o passe do escritor, o resultado do trabalho de oito meses o tornou conhecido nacionalmente. A publicação vendeu 122 mil exemplares. Neste momento da entrevista, puxa um dos exemplares do livro lançado há 25 anos da sua biblioteca. Além da data do lançamento em Porto Alegre (17 de março de 1984), a obra estampa a seguinte dedicatória, que ele lê em voz alta: "Para minha querida e amada mãezinha, o livro que traduzi com fervor e paixão, a mesma que ela sempre me deu."

O livro 'Pé na estrada', que foi uma espécie de divisor de águas, abriu portas em sua vida profissional. Foi convidado a apresentar, na década de 80, o programa 'Prá começo de conversa', da TVE. A atração marcou época e foi uma das primeiras a dar espaço para bandas de rock gaúchas. Em 1989, foi para O Estado de S. Paulo e, no dia 17 de janeiro de 1990, por ser o tradutor do On the Road, conheceu Bob Dylan. Nascia ali o que, na medida do possível, pode ser considerada uma amizade. Mas, amigo mesmo, Peninha ficou do tour manager de Dylan, Victor Maymudes, que chegou a morar com o escritor no Brasil.

Quando Bob Dylan tocou em Porto Alegre, em 1991, Peninha fez as honras de anfitrião: levou o cantor "fumar um" no Morro Santa Teresa e, depois, tomar sorvete na banca 40 do Mercado Público. E garante que ninguém o reconheceu! O jornalista já acompanhou turnês, assistiu a mais de 70 shows, tem toda a discografia Dylan e conhece mais de 400 letras de música de cor e salteado. Com os tempos modernos, a internet facilitou o acompanhamento dos passos do ídolo.

Peninha, o polêmico

Peninha é um provocador nato. Gosta mesmo é do embate de ideias. Mas acredita que, na maioria das vezes, de duas, uma: ou se expressa mal ou é mal interpretado. Suas declarações já geraram muita polêmica e fizeram com que ele perdesse amigos e, também, ganhasse inimizades. "Eu sou a fim de confronto, mas do confronto intelectual, do debate de ideias, de dinamitar a hipocrisia. Mas, ao mesmo tempo, sou relativamente histérico, algumas vezes, quando eu fico 'braba'. E eu já fiquei braba muitas vezes! Não me arrependo do conteúdo das declarações, mas da forma e do desdobramento", avalia.

Quando questionado sobre suas qualidades e defeitos, ele revela o lado debochado, que mistura ironia, bom humor e sarcasmo: "Minha principal qualidade, com certeza, é a modéstia. Eu diria, até, que a minha modéstia é a maior do mundo. Eu sou o cara mais modesto que existe e, se alguém tiver a coragem, o desplante, de falar que a modéstia dele é maior que a minha, eu sou capaz de espancar. Não existe modéstia mais bonita que a minha. Além da modéstia, é claro, tem o brilhantismo, a generosidade, a luminosidade e a intensidade, mas todos suplantados pela modéstia. Meu principal defeito é essa modéstia excessiva. Eu deveria ser mais exibido e falar mais de mim."

Vegetariano desde a década de 80, Peninha se define como falastrão, desorganizado, "maconhólogo", idiossincrático e individualista, mas ressalta que o seu individualismo é à la Bob Dylan. "Sou neuroticamente individualista e só me interesso por mim, num certo sentido. Acho que sou um cara ecumênico, que tem uma obra 'social', que fez um monte de coisa pela história do Brasil e pela edição de livros, mas no fundo eu tenho esse individualismo americano, à la Bob Dylan. Não no sentido egoísta."

Entre os arrependimentos, está o fato de ter viajado bem menos do que gostaria, pois, segundo ele, os livros exigem muita dedicação. Pretende ainda conhecer o Egito, o Alasca e lugares da Ásia. Quando o jornalista se autoavalia, enxerga um homem com mente de escritor, que percebe o mundo através de suas leituras e de seus projetos autorais. "Minha visão de mundo está diretamente ligada a uma visão andarilha, caminhante, nômade, aventureira. Em função das exigências da minha obra, acabo viajando muito menos do que gosto e preciso."

Na instância pessoal, lamenta algumas "lambanças" e de não ter sido incauto na vida amorosa, a qual iniciou muito cedo. Com cinco anos, começou a "namorar" Gigi e este relacionamento durou 19 anos. A amizade permanece até hoje. Para Peninha, casamento e namoro não são sinônimos de monogamia. "Eu anuncio: 'se quer me namorar, me namora. Não vou te cobrar nada, mas não sou monogâmico.'" A explicação dele para esta postura? "Pô, sou hippie, né? Mas sempre dá merda."

Depois da Gigi, viveu durante 14 anos com a designer Ana Adams e assumiu as enteadas Belém, 28 anos, e Flora, 25, como filhas. Mais tarde, foi casado com a jornalista Lúcia Brito, com quem teve uma filha, Lízia, 12 anos. E, atualmente, namora a escritora, publicitária e jornalista Paula Taitelbaun. "Até que eu sou um cara bem longevo, porque, se você for somar tudo, eu permaneci casado por mais de 40 anos."

Um ritmo desacelerado em uma casa à beira-mar. É o que Peninha espera do futuro. O que não significa que ele deixará os livros de lado, pois ainda planeja escrever mais 50 obras. Já tem até os temas definidos. Só precisa se livrar do mau hábito herdado do jornalismo de escrever sob tensão, à base de café e com um método criativo muito atribulado. Intenso e inquieto, Eduardo Bueno é assim mesmo: excesso de vida em uma só. E, dependendo do vento, Peninha também vai além.

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