Paulo Moreira: Um jornalista musical

O jornalista Paulo Moreira tem histórias de sobra de sua trajetória dedicada à música e ao programa que exalta o jazz

Paulo Moreira | Crédito: Rafaeli Minuzzi
As amigas colocando os assuntos em dia na mesa ao lado, a cafeteira moendo os grãos escuros e o líquido enchendo a xícara de porcelana branca. Todos os sons da charmosa cafeteria são deixados de lado quando o jornalista Paulo Moreira - ou Paulinho, como é mais conhecido desde criança - começa a contar sua trajetória pessoal e profissional como um dos jornalistas culturais mais significativos de Porto Alegre. Na verdade, um especialista em jazz, há anos apresentando e produzindo o programa Sessão Jazz, na Rádio FM Cultura, acompanhado e cultuado pelos apreciadores deste gênero musical.
O "portoalegrês" denuncia: sua origem está no Bairro Santana, na Capital, onde nasceu em setembro de 1960 e morou toda sua infância. E é o mesmo local para onde, por uma "incrível coincidência", resolveu voltar depois de 27 anos. É da Rua Vicente da Fontoura que tem suas mais felizes lembranças. A começar por esta, que conta com prazer: "Tínhamos uma turma grande. As avós de uns amigos moravam perto da minha casa e todas as quartas, sábados e domingos eles iam visita-las. Como eu morava em casa com pátio, iam todos pra lá brincar. A gente jogava bola, brincava de esconde-esconde. Lá era o paraíso deles".
O gosto pela música do pai da Rafaela e da Roberta e do avô da Julia, de 10 anos, sempre foi muito evidente, o que fez com que conquistasse outro apelido na adolescência, entre os colegas do Colégio Inácio Montanha, do qual lembra orgulhoso - Dylan. "Em 76, Bob Dylan lançou um disco chamado Desire, que tinha a música Hurricane e eu era o único que gostava da música. Algumas pessoas ainda me chamam assim?Dylan! "
O início no jornalismo
Suas outras paixões - ler e escrever, incentivadas sempre pela mãe professora, em 75, ainda no primeiro ano do segundo grau -, o levaram a se inscrever em um Curso Profissionalizante de redator auxiliar. "Já tinha a ideia de ser jornalista desde sempre porque gostava muito de ler e escrever. Sempre fui louquinho por informação. As pessoas dizem que eu tenho uma memória infernal, mas é porque eu me informo desde que eu me conheço por gente, especialmente na área de música."
Em 78, prestou seu primeiro vestibular na PUC, do qual lembra brincando: "Até hoje não sei como passei. Fiz seis meses de cursinho, sentava na última fileira, era bagunceiro. Ajudou-o a Rádio Continental, que nos dias do vestibular apresentava às 7h um programa com dicas para as provas. Era o Opinião Jovem, que ouvia com atenção e graças ao qual, reconhece, acertou muitas questões.
Nos quatro anos que sucederam a formatura na Famecos em 82, Paulo trabalhou como freelancer em áreas que vão do setor rural até a mecanização da indústria. Com muito carinho, relembra que foi professor de Publicidade do Curso Profissionalizante, sob contrato emergencial com o governo Collares, onde ficou de 82 até 88. Após ser dispensado e o curso ser extinto, durante seis anos foi professor de turmas do segundo grau. "Com 22 anos eu tinha alunos com o dobro da minha idade. Com alguns ainda mantenho contato. Foi uma experiência maravilhosa."
Sua "memória infernal" também lembra e desenha mentalmente as salas de projeção do Colégio Júlio de Castilhos, onde trabalhou no Audiovisual de 88 a 95 à noite. Bem como das inúmeras viagens feitas com um amigo fotógrafo. "Uma vez ele montou uma excursão. Saímos num domingo e voltamos numa quinta-feira, percorrendo cidades catarinenses fazendo matérias. Dentre elas, um freela numa empresa de uns primos meus, uma das primeiras a trazer semente de forrageira para o Brasil".
Ao mesmo tempo, e em consequência disso, Paulo começou a trabalhar, em meados de 85, na Expointer, onde conheceu Luciano Klöckner, professor da PUC, que o indicou para ser repórter do Programa Campo e Lavoura, lançado pela rádio Gaúcha posteriormente. No fim das contas, resume, em 86 tornou-se apresentador e produtor do programa que ia ao ar diariamente, das 5h às 6h. "Eu meti a cara. E deu tudo certo."
Dessa época, Paulo descreve perfeita e carinhosamente a rotina com as colegas Genoveva Penz (redatora) e Otília Souza (repórter). "O programa foi um estouro, o primeiro programa de rádio nesse formato. E eu tive a sorte de trabalhar com essas duas pessoas maravilhosas. Nós fazíamos as pautas juntos, gravávamos. Depois, tínhamos que estar ligados caso acontecesse alguma coisa. Cansei de ir 10, 11 horas da noite para a rádio tirar um pedaço do programa e colocar um boletim do repórter. Eu deixava gravado: "Informações com o repórter fulano de tal"."
A grande virada
Em 95, Paulo conta ter surgido a grande oportunidade para atuar no jornalismo cultural e na área da música. Ao mesmo tempo em que produzia o Campo e Lavoura, também respondia pela produção do Gaúcha Entrevista. Em 17 de abril desse ano, lembra bem, foi ao ar o primeiro Programa X, uma atração humorística comandada por Alexandre Fetter. Fica até meio constrangido ao contar que, em três meses, o programa "foi uma loucura". "Eu nunca dei tanto autógrafo na minha vida como naquela época. As pessoas iam no estúdio acompanhar o programa." Menos de meio ano depois, em setembro, o programa tinha 95 mil ouvintes por minuto, foi assunto de capa do Segundo Caderno do jornal Zero Hora e a turma gravou um disco com as músicas dos personagens do programa.
No primeiro Planeta Atlântida, Paulo conta com alegria do episódio em que a banda Armadilha estava prestes a entrar no palco e alguns de seus aparelhos de som não funcionaram. Ele, mais Alexandre Fetter e Rogério Forcolen, subiram ao palco "para falar besteira" e distrair o público de 40 mil pessoas. "Era um fenômeno", recorda Paulinho. "A gente fazia piadas, mas também fazíamos entrevistas. O resultado é que foi a primeira vez que bandas gaudérias concediam entrevistas para a rádio Atlântida."
Depois de 10 anos na emissora, Paulo foi demitido. Não guarda mágoas: acredita que levou consigo a satisfação de ter conhecido muita gente e ser um nome conhecido junto à comunidade cultural. E até agradece, de certa forma, pois a passagem pela Atlântida foi o trampolim para trabalhar com o que mais ama: foi para o Correio do Povo, em 96, fazer pautas culturais, entrevistar pessoas do meio musical e até atuar como editor de Cultura.
Das pautas que lembra com mais carinho da época, ele destaca duas que parece visualizar enquanto relembra. A primeira foi uma matéria de domingo, página inteira, com o título "O som que vem da periferia", sobre a chegada do Hip Hop no Partenon. A outra, em 98, época em que o rock gaúcho estava fervilhando, fez uma matéria sobre o Estúdio Dreher, onde as bandas gravavam seus demos, lincando com a Garagem Hermética, "que eu chamei de Cabo Canaveral por ser uma espécie de plataforma de lançamento dessas bandas".
"O corpo e a alma do Jazz"
Após dois anos de Correio, Paulinho saiu e fez alguns freelas, como escrever críticas de cinema para o Jornal CDF, então editado pela jornalista Cristiane Ostermann e voltado para vestibulandos. Esse contato abriu-lhe as portas para ser, mais tarde, programador musical da atração Sessão Jazz, na Rádio FM Cultura, que estreou em 27 de julho de 1999. Por que um programa sobre Jazz? "Sempre gostei. Em meados de 82, eu e um grupo de amigos criamos o Clube do Jazz, onde nos reuníamos para ouvir os cerca de 8 mil discos que um amigo tinha e eu passei várias noites gravando os discos dele em fitas K-7."
Esta relação com a música existe "desde que me conheço por gente", esclarece. "Minha mãe sempre ouvia a Rádio Guaíba, eu tinha uns 9 anos e já escutava Beatles e Stones. Na década de 70 ouvia a Rádio Continental, onde tocava as coisas mais diferentes do Brasil e do Mundo. Lá aprendi a ouvir Alceu Valença, Belchior, Caetano, Gil".
Sobre o Sessão Jazz, o corpo e a alma do Jazz, conforme consta no slogan, ele conta que no início se espantou com a repercussão e a reação imediata das pessoas com o programa ao vivo, que trazia muita informação " e uma variedade de coisas que eu conseguia tocar em uma hora de programa diário". Em 2004 o programa passou a ter duas horas de programa, o que ajudou Paulo Moreira a se tornar uma verdadeira referência no assunto em Porto Alegre.
Bagagem internacional
O reconhecimento maior vem da própria comunidade dos músicos. Recebeu o Prêmio Joaquim Felizardo, concedido pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre em 2010 ao "Melhor programa de rádio". E agora em 2015 quase explodiu de alegria ao ser homenageado no Porto Alegre Jazz Festival. Acredita que é consequência dos 16 anos de programa: "Eu devo estar fazendo alguma coisa direito", diz, reflexivo.








Também em decorrência disso, há cinco anos vem realizando algumas apresentações, como os shows da big band de Porto Alegre, a Brothers Orchestra. Em 2010, também foi convidado a participar como jurado do Festival Jazz Ahead, na Alemanha, promovido pelo governo alemão, com o objetivo de estimular os festivais locais a contratarem novos grupos de jazz alemães. "Agora, além da minha voz, minha cara está aparecendo", brinca.








Apesar de não tocar nenhum instrumento, "apenas discos", Paulo está sempre em busca de coisas diferentes. Já fez cursos de jazz sobre o músico Miles Davis e outros expoentes do jazz internacional, realizou palestras e um curso sobre a história dos Beatles e já programa o próximo, desta vez sobre a invasão britânica no mundo da música. De 1999 a 2004, viajou para assistir o Free Jazz Festival, Chivas Jazz Festival, BMW Jazz Festival, no Rio de Janeiro e em São Paulo, Festival de Jazz em Punta Del Este, e a shows de suas bandas favoritas, como o Rolling Stones, em São Paulo.
Dia a dia
Aos 35 anos, quando ainda trabalhava na Rádio Atlântida, Paulo descobriu sua insuficiência renal. "Nasci com os rins policísticos e, ao longo da vida fui perdendo a capacidade renal aos poucos. Ou seja, quando os rins metabolizam álcool, carne ou queijo, por exemplo, eles se contraem e, quando distende de volta, cada cisto aumentou um pouquinho, o que fez com que eu perdesse, paulatinamente, a função renal. Há 11 anos, quando comecei a hemodiálise, eu tinha apenas 15% de capacidade renal", explica, tratando da doença com a maior naturalidade.
Então, desde 2004, sua rotina foi modificada e suas viagens diminuíram, pois tem um compromisso sagrado todas as manhãs de terças, quintas e sábados. Depois de muito tempo, o inquieto nato aprendeu (de uma forma muito leve) a passar as longas quatro horas do tratamento dormindo, mesmo com muita luz e pessoas falando ao seu redor, ou então agarrado a companheiros inseparáveis: livros, como "O Lobo de Wall Street", e as revistas de música Uncut, Mojo e Rolling Stones, que deixam pesada a grande mochila. "Tem alguns aprendizados que tive que desenvolver para levar a vida de uma forma leve. Tenho algumas restrições, mas nunca quis ser escravo da doença e nem me sentir coitadinho. O que vou fazer? Sentar e ficar chorando? Não! Senão a vida vai passar e eu não vou fazer nada."
Sobre o futuro do rádio, Paulo resolve facilmente a velha discussão. "O cinema ia matar a literatura na década de 20, a TV ia matar o cinema na década de 50, o videocassete ia matar a TV, e a internet, todos os veículos de comunicação, inclusive o livro. As pessoas condenaram o jornal à morte, mas ele não morreu. Alguns veículos fecharam, mas porque foram mal gerenciados, não acompanharam os novos tempos. Mas o rádio é o veículo que tem mais instantaneidade, nada consegue superar seu imediatismo. A nossa missão é conversar com as pessoas, além de prestar serviço e informação. E o segredo disso? Ser apaixonado pelo que faz", encerra.
Com o fone de ouvido, sentado à mesa de áudio e rodeado de seus cerca de 700 discos, além do acervo da rádio FM Cultura, Paulo não vê a hora passar. "Gosto de ficar no computador, escolhendo e escutando os discos e fazendo o script do programa. Às vezes fico das 15h até a meia noite na rádio, não gosto do que fiz, amasso o script e faço tudo de novo".
Aos 55 anos, descarta o medo e as expectativas acerca da doença e de um possível transplante e diz almejar apenas continuar o que ama e vem fazendo há muito tempo. "Não estou sentado esperando. Minha vida é essa e tudo o que acontece fora dos três horários da hemodiálise". Mas almeja, despretensiosamente, ser curador do Festival de Jazz de Porto Alegre um dia, pois acredita ter muito a contribuir, pelo "bom trânsito no cenário cultural". E ainda, quem sabe, escrever um livro sobre o assunto, mas, ressalva "só quando "tiver algo diferente do que já foi feito por outras pessoas".

Comentários