Sandra de Deus: Feita de retalhos (e não de atalhos)

Jornalista e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) carrega duas paixões da infância até hoje: rádio e Internacional

Mulher negra e que passou a infância no campo: essa poderia ser a história de mais uma brasileira que não sabe como é viver longe das lavouras e plantações. Mas não é. Sandra de Fatima Batista de Deus, a Sandra de Deus, desafiou o futuro e desejou muito mais. Filha biológica do casal Ibanes, de 90 anos, e Marília, falecida há mais de duas décadas, considera-se adotada pelo ensino público. E foi por meio dele que mudou o que poderia já estar definido: é a primeira mulher a ingressar no Ensino Superior da família - acumulando hoje especializações, um mestrado, um doutorado e uma carreira consolidada no rádio e na educação.

Professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), a jornalista é enfática: "A vida não é um atalho, mas feita de retalhos". Isso porque, de acordo com ela, sempre vai se construindo no coletivo. Toda essa consciência começou aos 12 anos, após deixar São Vicente do Sul e ido viver em Santa Maria. Apesar de ter o intuito de "apenas estudar", acabou se tornando uma trabalhadora infantil - o que condena até hoje. Mas foi esse momento que lhe despertou para uma crença no coletivo, em um percurso de militância e indignação permanente diante de injustiças. Tudo isso por acreditar que a jornada deve se dar pelo contexto do amor e não da dor. 

Nas ondas do rádio

Da infância no campo, carrega as lembranças da flor de corticeira, das brigas e brincadeiras com os cinco irmãos, dos medos de temporais e, é claro, do rádio. "Minha trajetória começa no interior do Rio Grande do Sul, com meu pai escutando futebol e programas veiculados por emissoras cariocas e paulistas." Naquele tempo, o rádio chamava muita atenção de Sandra, que ainda via a mãe escutando radionovelas. 

Quando chegou a época de prestar vestibular, entendeu que só teria um caminho a ser percorrido para chegar ao rádio: cursar Jornalismo. E, mesmo com pouquíssimas mulheres na área naquele momento, enfrentou mais uma luta quando, em 1977, conseguiu ingressar na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Um ano após, conseguiu o primeiro trabalho na área, um estágio na rádio Imembuí, em Santa Maria - onde, mais tarde, foi efetivada. Concomitantemente, começou a trabalhar na sucursal da Caldas Júnior, também em Santa Maria, e depois no jornal 'A Razão'. Então, durante 20 anos, chegava na rádio às 5h para colocar os programas no ar. ""Sou muito feliz com a profissão que escolhi. Essa é a melhor do mundo", diz ela, ao salientar que nunca se sentiu triste, chateada ou desiludida com o Jornalismo.

Sandra ainda acumula uma passagem pela rádio Santamariense, quando, de repente, tudo mudou novamente para ela. Dessa vez, seria a oportunidade de viver na Capital. Isso porque, em 1998, foi convidada para chefiar a reportagem da rádio Gaúcha, em Porto Alegre. Ela, que já foi produtora, repórter e coordenadora de atrações e possuía uma carreira consolidada, queria mais. Foi então que, nesse meio-tempo, fez concurso para lecionar na Ufrgs. Apesar de manter por meses os dois empregos, optou posteriormente pela Educação, onde continua até hoje, como professora titular de Rádio - é claro.

Educação: uma paixão

Sandra acredita que ser professora é um aprendizado constante. "A cada semestre aprendo com minhas turmas. E é esse aprendizado que renova o Jornalismo", aponta. Ela, que se sente muito feliz dando aulas na graduação, adora trabalhar com esses estudantes. "Se esses estudantes não forem melhores do que eu, sou eu quem fracassa", decreta ela, enaltecendo que, desde 1998, leciona para todos os alunos formados em Jornalismo pela Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Ufrgs (Fabico).

Sandra não se arrepende até hoje de ter decidido ser uma jornalista professora e relata que na rotina, entre a preparação e o ofício de dar aulas, ainda mantém todas as disciplinas de rádio funcionando "com uma estrutura de uma emissora em um estúdio mesmo". Todo este amor e dedicação pelo ensino só aumentam com o tempo. "A idade faz a gente melhorar. Hoje, sou uma professora melhor do que já fui." E é exatamente por isso que deixar as salas de aula está fora de cogitação por um bom tempo. Para o futuro, deseja não se aposentar tão cedo e continuar lecionando, para fazer experiências com os alunos. 

Além das disciplinas de rádio, Sandra também é a responsável por ensinar sobre outro assunto. Apesar de nunca ter atuado na área, é apaixonada por futebol e estudiosa da área. Assim, percebeu que existia uma oportunidade para criar a disciplina de Jornalismo Esportivo na Ufrgs, bem como a de Especialização - que foi ministrada por anos, porém não existe mais. 

Ex-aluna de Sandra, a repórter de Coletiva.net Nathália Ely relata que, para ela, a professora é uma "referência em Jornalismo Esportivo". Por isso, não acreditou quando Sandra aceitou ser orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso na graduação. "Isso sem falar no ser humano, na história de vida, na batalha profissional como mulher negra e ocupando cargos de lideranças. Por todo ensinamento, exemplo e estímulo, até hoje, eu não consigo não chamá-la de outro jeito senão de mestra. Para mim, sempre será", declara.

"O Gigante me espera"

Além do rádio, outra paixão que carrega desde a infância é também fruto do pai. Isso porque o que Ibanes mais fazia ao acompanhar a programação dos veículos radiofônicos era escutar os jogos do Internacional. E, hoje, aquela menina do interior, que se emocionava com os gritos de gol propagados pelas ondas, os vê de pertinho. Afinal, considera-se uma "sócia que vai a todos os jogos". E faz isso a pé, sempre.

Afinal, o certo é que "o Gigante a espera para começar a festa" - parafraseando um trecho de um dos cantos da torcida. Aliás, não é somente até ao estádio que caminha. Pelo contrário: "Sou uma 'caminhante' de Porto Alegre, que nunca dirigiu e nem teve carro", revela ela, que se considera privilegiada por não precisar de algum tipo de transporte para chegar e voltar do trabalho. "Vivo o meu bairro. Por opção de vida e política, faço tudo no Santa Cecília."

Contudo, não sabe andar só e, tampouco, fazer a caminhada isolada. Gosta de andar em bando e "viver tudo junto e misturado", porque "tem mais sabor e o agridoce aguça a existência". Por isso, ela se considera solidária e coletiva, gosta muito de tomar café com os amigos e de reuni-los para um happy hour. 

Não tem como falar de Sandra e coletivo sem citar a família. Uma vez por mês, regressa à terra natal para visitar o pai que, no auge das suas nove décadas vividas, toca o sítio da família "como se tivesse 30 anos". Isso, para ela, além de se divertir ao contar, ainda considera "ser uma graça de Deus ter uma pessoa nessa idade com lucidez e mobilidade". Irmã mais velha dos irmãos José Carlos, Tereza, Vânia, Vera, Marina e Sérgio (de criação), ainda é mãe da jornalista ambiental Raissa.

Entre páginas e práticas

Quando veio para Porto Alegre, tudo era muito estranho para Sandra, uma menina do interior. Porém, com o tempo, acabou se apaixonando pela cidade e, hoje, inclusive, tem o título de cidadã porto-alegrense, concedido pela Câmara de Vereadores. Por isso, diz-se encantada com o pôr do sol, o Lago Guaíba, o Beira-Rio, o Parque da Redenção, os cheiros, os sabores e as cores do Brique da Redenção. "Eu vivo Porto Alegre", enaltece.

Nos momentos em que não está desfrutando da cidade, gosta muito também de ficar em casa e cozinhar, sendo risoto um de seus pratos principais. Também assiste futebol na televisão sempre que pode. Sandra, aliás, é muito voltada ao mundo dos esportes e já jogou handebol, além de ter feito aula de boxe por anos. Ela parou somente porque ficou com receio, após realizar cirurgia para retirar um câncer de mama, e também pelo fato de seu treinador não atuar mais perto dela. Por isso, atualmente, tem a ajuda de uma personal para ajudá-la a cuidar da saúde.   

É uma raridade ir ao Cinema, só quando realmente tem algo para assistir e, tampouco, gosta de séries. "Vejo pouca coisa assim. Eu sou mais é leitora voraz", conta ela, ao confessar que é assídua e lê muitos livros ao mesmo tempo. O título do momento é 'Ensinando a Transgredir', de Bell Hooks, além de estar relendo 'Viver para Contar', de Gabriel García Marquez. Isso porque lhe chama atenção o trecho: "A vida não é o que a gente viveu e sim o que a gente recorda para contá-la". Além disso, acompanha todos os livros publicados pelo moçambicano Mia Couto. 

Quando não está lendo, escuta música permanentemente e, inclusive, trabalha ao som de suas playlists. Contudo, não é somente pelo Spotify que as consome. Afinal, ainda tem todos os LPs e CDs guardados e, é claro, os respectivos tocadores. Totalmente eclética, gosta muito de Chico Buarque, assim como aprecia música nativista e a cantora Flávia Wenceslau. Também frequenta shows e, no momento, prepara-se para ir assistir ao gaúcho Vitor Ramil, enquanto os últimos conferidos foram apresentações do rapper Emicida e do violeiro Almir Sater. 

Ela, que se considera muito organizada e metódica, é uma otimista por natureza. E é exatamente por isso que se chama Sandra de Deus, mas poderia facilmente ser reconhecida por "Sandra do Rádio", "Sandra do Inter", "Sandra da Educação", "Sandra do Coletivo", "Sandra das Lutas"... Sandra de Tudo (e de todos).

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