(Des)acelerar a vida

Por Cleidi Pereira, para Coletiva.net, em especial de Semana da Mulher

Lembro bem do dia em que decidi não ter mais pressa. Minha filha mais velha tinha pouco mais de um ano e brincava na sacada do nosso antigo apartamento, em Porto Alegre, enquanto eu cumpria aquele ritual frenético matinal que sempre antecedia o percurso creche-trabalho. Era sempre uma corrida contra o relógio para não perder ônibus, embora a pontualidade no transporte público não era lá muito confiável, o que agravava a tensão do momento. Pois nesse dia, minutos antes de sair de casa, me deparo com minha filha toda suja de terra. Alheia ao andar das horas, havia metido as pequenas e curiosas mãos numa das floreiras. Parei para observar aquela cena. Pegar, sentir, explorar, cheirar. O presente, um presente. Não era justo interromper a brincadeira, que, na verdade, era mais do que isso: era ela, recém-chegada, descobrindo o mundo. Foi neste exato momento que decidi desacelerar. Foi também neste exato momento que, inconscientemente, comecei a elaborar um plano de fuga. 

Naquela altura, eu trabalhava como repórter de jornal, geralmente apontada por pesquisas e estudos como uma das piores profissões, devido aos níveis de estresse aliados à baixa remuneração. Vivia correndo. De uma pauta para outra, para fechar a matéria, atrás das fontes, etc, etc. Café e adrenalina eram quase que regra no ambiente de uma redação, mas havia sempre exceções, como um experiente colega que parecia resistir àquela loucura com sua fala tranquila e passos lentos. Foi dessa rotina frenética e cada vez mais sem sentido - depois de ter colocado um ser humano no mundo - que decidi fugir. A gente ainda não sabia, mas era o início da nossa história com Portugal. 

Um mês depois daquela cena das mãozinhas sujas de terra, me candidatei a um mestrado em Lisboa. Logo veio o aceite e, mais uma vez, a pressa. Tivemos dois meses para vender quase tudo, resolver os trâmites burocráticos, encaixotar uma história, colocar objetos e memórias de três vidas em quatro malas que seriam despachadas em uma viagem só de ida. E aterrisámos em Lisboa, onde nunca antes tínhamos colocado os pés, com mais dúvidas do que certezas. Buscávamos um outro ritmo de vida, mas, após o primeiro mês de férias e deslumbre.... a pressa. A busca por trabalho, freelas, por um teto pra chamar de nosso, pra existir como números perante o Estado português. Descobri que havia um abismo entre a decisão de desacelerar e o desacelerar propriamente dito. Era preciso construir uma ponte, cuja estrutura iria, aos poucos, se materializando com pequenas mudanças de atitude no dia a dia, mas, principalmente, de mentalidade. 

O tempo foi passando. Decidimos nos responsabilizar e não terceirizar os cuidados relacionados com nossa filha, que ficaria em casa, conosco, até os seus dois anos e oito meses. O tempo dela era diferente do nosso, que agora também era diferente do dos outros, da sociedade capitalista pós-moderna. Descobri que os dias poderiam se arrastar ou passar voando, que o trabalho não-remunerado feminino é o que faz a engrenagem girar, que o cuidar, apesar de sua importância fundamental, é uma tarefa invisível. 

Quase seis anos, três filhas, um mestrado, um livro e um doutorado (iniciado) depois, posso dizer que fracassei parcialmente no meu objetivo. Claro que o ritmo de vida em Lisboa é completamente diferente daquele que vivia em Porto Alegre. Só que agora somos pais imigrantes, sem rede de apoio. E, como diz o Emicida, "tudo o que nós tem, é nós". Muita gente nos pergunta: "como vocês conseguem? Como dão conta?" Simples: não damos. Pura ilusão de ótica. Ou o sono é prejudicado, ou a casa fica bagunçada, ou são planos que ficam para depois. Hoje, sou jornalista nas "horas vagas", geralmente trabalho quando elas dormem. É uma fase, dizem que passa. "Os dias são longos, os anos são curtos." Sigo apreciando a paisagem vista da janela deste trem-bala que é a vida. Um dia ainda volto para, enfim, desacelerar. 

Cleidi Pereira é jornalista, mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, doutorando em Ciências Humanas e correspondente internacional de Coletiva.net

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