Ninguém quer ser odiado como o Chris

Por Roberto Schultz, para Coletiva.net

A série Everybody Hates Chris ("Todo Mundo Odeia o Chris", no Brasil) foi baseada nas experiências do Chris Rock, quando ele era ainda um adolescente, embora na época da série ele já estivesse com 40 anos de idade e fosse apenas o seu narrador (hoje, tem 57 anos). Chris Rock é, em tese, um ator e comediante, embora o seu sempre tenha sido  um  humor altamente discutível e grosseiro, mesmo antes do episódio ocorrido neste Oscar de 2022, quando levou o tapa do Will Smith.

O próprio tapa, em si, também soou meio rasteiro ou fake. Depois do tapa, Will Smith voltou caminhando para o seu lugar no auditório com um meio sorriso no rosto (Chris também ficou com um sorriso igual, no palco) e de lá passou a mandar uns xingamentos para Rock. Mas com um fraco poder de convencimento e sem muita indignação, o que me pareceu ser uma brincadeira entre amigos. 

Parecia uma facada dada na barriga de alguém, com uma faca cenográfica, cuja lâmina encolheu para dentro do seu cabo, e desferida para gerar algum resultado na vida ou na carreira de alguém. Enfim, nunca saberemos se o tapa/facada foi de verdade.

Fato é que todos passaram a odiar o Chris, como acontecia na série de 2005. E também a odiar Will Smith pelo suposto "excesso de violência" cometido. Entre choros e feridos; trocas mútuas de desculpas; apoios e cancelamentos, tudo meio ditado pelo clamor popular e pela necessidade de se fazer ou de se falar alguma coisa; qualquer coisa para manter a lacração, e não exatamente para defender um direito ou protestar-se por uma covardia.

E aí é que se vê o quanto o apelo popular tem influenciado em decisões políticas, judiciais ou administrativas. O que de certa forma é meio perigoso. Se um juiz de direito (em qualquer nível, da primeira instância aos Tribunais Superiores), um político ou um delegado de polícia tomam suas atitudes baseados na opinião pública e não na Legislação, estaremos regrados pela mais absoluta imparcialidade. Estaremos não. Já estamos! Para o bem, sim, mas também para o mal.

Se você ou eu, que adoramos crianças (no sentido puro, aquele antigo), formos afagar amistosa e inocentemente a cabeça de uma delas num parque, e alguém gritar "pedófilo!" e juntar gente, só com muita sorte e algumas testemunhas a nosso favor escaparemos da condenação e da execração pública. Isso se não der linchamento físico e não apenas nas redes sociais. Não porque sejamos pedófilos, mas porque a opinião pública terá decidido isso. E as autoridades podem, eventualmente, acatar esse nefasto "veredicto".

Em relação à movimentação em torno da censura aos artistas que se manifestaram politicamente no Festival Lollapalooza, e especialmente em relação à cantora Pablo Vittar, que foi a primeira a se manifestar (depois seguida por Fresno, Lulu Santos, Glória Groove e outros), estou convencido de que o clamor popular é que decidiu pelo julgamento - imediato - desse direito à liberdade de expressão.

A prova disso é que dois ou três dias depois (em 29.03.22), o Superior Tribunal Eleitoral arquivou o processo contra o Festival e sua organização (que nem chegaram a ser formalmente citados no processo, para se defender). E isso por iniciativa do próprio Partido Político (PL), que apresentou a representação no TSE. Ou seja, o PL desistiu daquela representação. 

A pressão pública foi tão grande contra os interesses do partido e dos seus candidatos, que eles resolveram acabar com aquela bobagem e desistir do pedido. Digamos que, nesse caso, o clamor popular atuou "para o bem". De qualquer forma, e por um direito antigo (e garantido pela Constituição), mesmo que o PL não tivesse desistido da representação, haveria grandes chances de o pedido bater na trave.

Primeiro, porque esse direito já está mais do que garantido. E por razões diversas. Uma delas é a decisão do STF que julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.970, de outubro de 2021. No acórdão, consta a afirmação da ministra Carmen Lúcia, de que é "assegurado a todo cidadão manifestar seu apreço ou sua antipatia por qualquer candidato, por meio de seu trabalho, um posicionamento político antes, durante ou depois do período eleitoral". 

Segundo, porque não incide qualquer outra lei ou norma nesse tipo de manifestação político-eleitoral que não seja a própria Legislação Eleitoral. Não incidem o Código Civil, as leis que tratam de direitos autorais, ou de direitos de imagem, e tampouco (como alguns acreditam) as regras do Conar (mesmo sendo "propaganda"). E a Legislação Eleitoral incidente diz que a mera "menção à candidatura" de alguém não implica no angariamento de votos, a menos que se peça expressamente que se "vote em fulano ou cicrano". 

Nesse ponto, é bom mencionar, um evento do próprio PL no último final de semana apresentou o atual presidente da República como sendo "candidato à reeleição" ou como "futuro presidente" o que, pela Lei Eleitoral, somente poderiam fazer a partir de julho de 2022. E como foi que o PL se defendeu dessa infração? Disse, num folheto distribuído aos presentes no evento, que aquilo se tratava de "mera menção à candidatura", e não de uma campanha política pedindo votos.

Um detalhe interessante, pinçado por mim da decisão do ministro Raul Araújo, do TSE, que foi o mesmo que deu a liminar (impedindo as manifestações no festival) e que depois mandou arquivar a representação do PL: "Ressalto que a decisão anterior foi tomada com base na compreensão de que a organização do evento promovia propaganda política ostensiva, estimulando os artistas - e não os artistas, individualmente, os quais têm garantida, pela Constituição Federal, a ampla liberdade de expressão".

Uma espécie de "me desculpe aí, 'seu clamor popular'. Na minha decisão anterior, eu só dei a liminar porque não tinha entendido direito o que estava acontecendo". Como se vê, ninguém quer ser odiado como o Chris.

Roberto Schultz é advogado e atua com Direito focado em Comunicação.

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