Pavor de formulário

Por José Pedro Jobim, para Coletiva.net

José Pedro Jobim - Arquivo pessoal

Poucas coisas na vida me tiram mais o humor do que ter de preencher um formulário. Aqueles de papel mal fixados sob uma prancheta marrom e presos por uma caneta Bic por meio de uma correntinha prateada levemente enferrujada, em especial. Na bem da verdade, na realidade dos fatos, reflito que seja grande a chance de nunca haver preenchido um formulário de forma adequada e exemplarmente completa e correta ao longo dos meus 38 anos de idade. Tal feito - ou não-feito - é, aliás, algo que encaro com absoluta tranquilidade.  Diga-se de passagem, sempre que me vi na situação de ter de justificar o eventual fato de não saber o que escrever quando do preenchimento de uma daquelas muitas lacunas em branco, justamente a pessoa que no minuto anterior havia me pedido com veemência para preencher com esmo TODO o formulário, agora, 60 segundos mais tarde, me diz: 

"Não tem problema deixar isso em branco não."

Poucas coisas na vida me tiram mais o humor do que ter de preencher um formulário. E são muitas as razões que me fazem perder a paciência sempre que tenho que preencher um. 

O formulário, do ponto de vista prático, é o personagem que se posta entre você e o objetivo real daquilo que você realmente busca - ser atendido, na maioria das vezes. Trata-se de um ente maligno não-natural e materializado que age como uma verdadeira máquina do tempo, ao fazê-lo transcorrer de forma significativa e irritantemente mais devagar a partir do momento em que você tem de preenchê-lo. E isso tudo justamente quando, por óbvio, o que você mais tem é pressa.

Depois do quesito tempo perdido - item que inclui ainda alguns segundos perdidos até que se localize uma caneta em substituição à primeira oferecida por quem solicitou o preenchimento do formulário e que se encontra sem carga de tinta (e ainda assim disponível ali para ser usada - veja só - para se preencher um formulário!), chega-se ao segundo problema: caligrafia.

Além de péssima - para desgosto do meu pai (curiosamente um médico) -, a minha é também fortemente impactada pela falta de paciência que desprendo ao ter de preencher um formulário que por si só já desgosto. Em uma proparoxítona, por exemplo, começo bem. Dou início à escrita com traços firmes nas linhas que compõem as primeiras duas ou três letras daquela palavra, tudo bem rente às margens e com uma proporção adequada de tamanho e espaço. 

De resto, do meio em diante, trata-se de um traço único, pouco sinuoso e contínuo. 

E ilegível.

Passando pela forma, chega-se então ao conteúdo daquilo que solicita o formulário. 

Nome completo, idade, telefone e endereço. Ok, até aqui sem maiores problemas. Eis que poucos centímetros abaixo, à distância de não mais que duas linhas, invariavelmente o desconforto inevitável surge:

- CEP

-Complemento  

- Órgão emissor da sua carteira de identidade

- Qual a categoria da sua CNH

- Tipo sanguíneo

- Número do certificado de dispensa do Exército

- É alérgico a algum alimento? Se sim, identifique-os

- Qual o código de segurança do seu cartão de crédito?

Imagine a situação: a pessoa é solicitada a compartilhar o código de segurança do seu cartão de crédito.

Certa vez, no de 2020, minha maior irritação sobre o tema tomou forma e contornos únicos. Em um voo entre Dublin e Lisboa - naquele período que mais tarde seria entendido como o início da pandemia -, todos os passageiros de um voo lotado foram cordialmente solicitados em meio a uma leve turbulência e após um atraso de 24h a preencher um formulário como uma das primeiras medidas de rastreamento na eventualidade de contágio - algo extremamente pertinente, aliás. Com a aeronave em velocidade de cruzeiro e pedidos para que não fossem baixadas as mesinhas das poltronas em frente aos acentos (aquelas cuja única função é serem baixadas), sequer tive tempo de conseguir ler a primeira das muitas questões da folhinha recém me entregue e já senti aquele cutucãozinho amigo do inquieto passageiro da poltrona de trás.

- O senhor tem caneta? Pois a minha está a não funcionar....

"O passageiro trouxe a bordo uma caneta que não funciona" - pensei enquanto a máscara escondia o meu discreto sorriso.

De volta à saga do formulário.

Da metade da folha para baixo - na sorte do formulário ser daqueles de apenas uma lauda -, as questões correm de forma mais célere, enfim. Normalmente o subjetivo e o incerto dão lugar às tradicionais marcações em "x" naturais do ambiente das chamadas múltiplas escolhas. Tratam-se de questões que são um verdadeiro oásis do ato agonizante que entendo ser o preenchimento de um formulário.

Por fim - e em caso de não-desistência do preenchimento -, assinatura e data encerram a epopeia. Tal qual uma espécie de licença poética, este é o momento de um certo relaxamento ao se vislumbrar a luz ao fim do túnel de todo esse ardiloso processo.  Nele, quase sempre ensaio um novo design para a primeira. Usualmente tendo a ousar. Me arrependo em seguida, pouco após o acento no "É" do meu primeiro nome e, enfim, aborto a decisão na metade do percurso na quela que deveria ser a alforria dos últimos minutos. 

Irritado, chego ao fim da página com um resultado dúbio e que só de longe corresponde graficamente ao modelo que consta no meu documento oficial apresentado minutos antes como prova de que eu, de fato, sou eu. O que de certa forma não está errado, uma vez que sempre me reconheço como uma pessoa um pouco diferente após a árdua tarefa de preencher um formulário.

 José Pedro Jobim é jornalista.

Comentários