Uma capa, múltiplas interpretações

Por Laura Glüer, para Coletiva.net

Laura Glüer - Arquivo pessoal

A fotografia sempre marcou momentos históricos. A imagem visual pode ser desencadeadora ou reforçadora de crises. A todo tempo, por meio das imagens visuais, novas sensações são provocadas nos espectadores - medo, repulsa, curiosidade, emoção, expectativa.  

No livro A Câmara Clara, Roland Barthes propõe uma história dos olhares sobre a fotografia, para além da abordagem técnica, histórica ou sociológica. Segundo Barthes, em muitos casos, os olhares tornam-se mais poderosos que os fatos, os números ou as informações. 

O semiólogo francês também apresenta em sua obra uma categoria desconcertante e original chamada Punctum, que remete à pontuação. No latim, o termo designa "pequena picada", "buraco", "mancha", "corte". Constitui uma ruptura no olhar do espectador, que parte da cena, como uma flecha a cortar. 

A imagem que estampou a capa da Folha de São Paulo na última quinta-feira, 19, pode ser observada a partir desse conceito de Punctum. Mesmo se tratando de uma fotomontagem, técnica utilizada muitas vezes na imprensa, a polêmica imagem provoca no espectador a forte sensação de corte no olhar - por trazer um vidro trincado e a imagem do presidente atrás. 

Alguns podem achar que essa capa faz uma radiografia do momento atual do país. Um grupo considerável, porém, questiona o momento e o contexto em que esta imagem foi veiculada, e o quanto em nada contribui para a pacificação do país e para a legitimação do atual governo. Os mais críticos relembram outros episódios semelhantes, em que houve falta de sensibilidade editorial ou objetivos implícitos nas imagens veiculadas.  

Enquanto alguns enxergam ameaça de ruptura, outros poderão ver o vidro trincado, com um presidente confiante atrás, como resistência democrática. Tudo é uma questão de ponto de vista do espectador. Particularmente, como cidadã, prefiro a segunda hipótese. 

Um consenso, porém, já existe: é difícil ficar impassível e neutro diante desta capa. Imagens carregadas de Punctum perpetuam-se no tempo e ajudam a construir a história. Mesmo criticada, essa capa possivelmente nos ajudará a compreender melhor no futuro a complexidade deste janeiro de 2023. 

Como disse a própria fotógrafa Gabriela Biló, autora da imagem, diante da polêmica gerada: "há sentimentos ambíguos e leituras diferentes". E todos são válidos, na sua opinião.  

Onde está a mensagem final? Na imagem projetada ou na retina de quem vê? Ou em uma instância que surge a partir dessa simbiose? Fica mais esse questionamento, sem nenhuma pretensão de ter a resposta definitiva, apenas como um olhar semiológico possível a mais este fato envolvendo a imprensa brasileira. 

Laura Glüer é jornalista e professora universitária.     

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