As deusas do Liberato

Por Ivo Stigger Liberato Vieira da Cunha lançou neste outubro nova coletânea de crônicas. Selecionadas pelo autor entre seus escritos datados de 2002 a …

Por Ivo Stigger
Liberato Vieira da Cunha lançou neste outubro nova coletânea de crônicas. Selecionadas pelo autor entre seus escritos datados de 2002 a 2013, elas expressam - com brilho incomum, mas nunca inesperado - a plenitude criativa do cronista. Liberato fala dos seus temas de sempre: criaturas atormentadas pela solidão e pela saudade ou compelidas pelo ciclone das paixões, a nostalgia de tempos vividos ou apenas imaginados, feridas que ainda sangram tanto tempo depois, gente à deriva e gente que encontra espaço para a ternura, a felicidade e o amor, gente, enfim. Algumas crônicas, amparadas pela irrestrita solidariedade do autor, ultrapassam as glórias e misérias dos humanos e iluminam com um olhar compassivo cães abandonados que vagueiam na cidade hostil, esmagados pela dor e solidão . O Silêncio do Mundo reúne algumas das melhores coisas que o Liberato já escreveu. A crônica que dá nome ao livro, por exemplo, é um dos textos mais belos - e mais doloridos - que eu li em toda a minha vida.   
Não são estes escritos, no entanto, a razão deste artigo. Seu foco é mais específico, mas não menos instigante. Amigo e parceiro do Liberato em jornada que se estende além de quarenta anos, fui - e sou - testemunha e personagem da controvérsia sobre se são reais ou imaginárias as belíssimas damas que povoam seus escritos. Polêmica que se estabeleceu entre os amigos e colegas do autor desde que suas primeiras crônicas foram publicadas no velho Correio do Povo. Transferido para a Redação de Zero Hora, esse debate sem remédio permanece, atiçado inclusive por muitos dos textos visitados por essas deusas e reunidos em O Silêncio do Mundo.
Há espaço para todos os tipos de crentes e descrentes nessa polêmica ampla e democrática, temperada pela curiosidade e por uma indisfarçável inveja. Dela participam os que proclamam total convicção de que as maravilhosas criaturas são reais e habitam o cotidiano do cronista com a mesma e despretensiosa banalidade de quem vai à banca da esquina comprar o jornal, o que confere ao Liberato a encantada condição de um dos caras mais sortudos do mundo. A maior parte de seus amigos e colegas, no entanto, acha mais provável o Coelhinho da Páscoa ser real do que existir uma sequer dessas mulheres de beleza e sensualidade tão absurdamente inacreditáveis.
Eu pertencia ao time formado pelos que têm certeza que as deusas do Liberato são mero produto da delirante imaginação e do desmesurado romantismo do cronista.
Até que aconteceu comigo.
Num entardecer azul de outono, no início dos anos 1980, eu estava em Berlim na condição de repórter cobrindo um evento cultural para o Correio do Povo. (Tinha que ser em Berlim que, com Paris e Cachoeira - esta, porto de partida e de chegada do Liberato e sua indelével Macondo - forma a tríade das cidades míticas do autor.)
Mas, voltemos a Berlim e a essa tarde mágica da minha conversão. Sentado à mesa de um café, nas cercanias do Portão de Brandenburgo, eu revisava a reportagem que precisava enviar à redação do jornal via fax, mais avançado recurso de transmissão de textos naqueles tempos pré-históricos em que não existia a internet.  Foi quando a vi deslizando pela Unter den Linden na direção do café. Ela era belíssima. Alta, esguia - mas não um desses esqueletinhos que hoje viraram padrão de beleza -, morena de cabelos compridos, que trazia soltos. Trajava um vestido azul claro que a brisa de outono punha a dançar revelando um palmo de coxa e realçando suas formas esculturais. Instante de beleza e sensualidade.
Ela entrou no café, naquele andar que se situa na fronteira entre o bailado e a levitação, e foi avançando entre as mesas, na direção em que eu estava. A esta altura meu convulsionado coração rugia como um carro de Fórmula 1 acelerado ao máximo naqueles centésimos de segundo em que o piloto aguarda a luz verde. Ela parou diante da minha mesa. Retirou os óculos de sol, talvez apenas para exibir os olhos de um violeta impossível, indispensável ingrediente do DNA das damas do cronista, e perguntou-me, numa voz de Helena de Tróia:
- O Liberato já chegou?
Foi naquele remoto entardecer de outono em Berlim que deixei, para sempre, o time dos incrédulos!

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