O clone congelado

Por Flávio Paiva Notícia da quinta-feira passada (14/04/02) nos jornais dá conta de que um tribunal francês decidiu que um casal que está congelado …

Por Flávio Paiva
Notícia da quinta-feira passada (14/04/02) nos jornais dá conta de que um tribunal francês decidiu que um casal que está congelado deverá ser cremado ou enterrado. O médico, que morreu há algumas semanas, foi congelado pelo filho, a seu pedido. Sua esposa, morta em 1984, já estava congelada. Na realidade, há inclusive uma agência de turismo que cobra US$ 3,50 por pessoa a entrada na residência dos mortos-vivos para ver as criptas, neste tour macabro.
O que está por trás disto é o desejo do homem de ser eterno. Numa certa medida, é saudável. Por amarmos a vida e aos nossos, não queremos morrer. Foi o que Freud chamou de instinto de vida. Isto impulsiona cientistas do mundo todo a procurarem decifrar os segredos da vida, em iniciativas como o projeto Genoma, que envolve diversos países e tem por objetivo conhecer o mapa do DNA do ser humano e, principalmente, o que ele representa. Este é o lado positivo.
O lado negativo é o da extrapolação, como sempre. Dotados de uma onipotência e de uma falta de lucidez, alguns imaginam ser possível contrariar as próprias leis da vida e da morte. A reportagem da Zero Hora, que foi um dos jornais que deu a notícia, fala inclusive em "trapacear a morte", que acredito tenha sido o intuito primeiro deste garoto-propaganda invertido de freezer.
Esta percepção, de que poderão em breve ser descongelados e ter seus prazos de validade aumentados, é uma distorção. O médico Raymond Martinot tenta negar a realidade. Tentou manter "viva" sua mulher em um caixão refrigerado dentro de sua casa. Pediu ao filho, que concordou, em ser congelado após a sua morte.
Situação semelhante acontece na novela "O Clone", escrita por Glória Perez, mãe da jovem Daniela Perez, assassinada brutalmente há alguns anos pelo ator Guilherme de Pádua e sua namorada. O trauma da morte de uma filha em condições tão estúpidas deve ser praticamente intransponível. Assim, é compreensível que ela tenha escrito "O Clone", em que um só ator interpreta três personagens distintos, sendo que um deles morre e é clonado. Certamente, é este o sentimento de Glória Perez com relação à sua filha morta. Quisera ter sido possível para ela reviver sua filha da forma mágica que acontece na trama por ela imaginada, para que ela vivesse muitos papéis ainda na sua vida.
Deve ser possível ao homem, sim, ir mais longe em sua imaginação e estudos. Ele deve querer mais. Entender mais. Poder mais. Conseguir decifrar o "grande segredo" da vida. Mas, para isto, temos que ter alguns balizadores. Não se pode deixar que o homem, em busca de seus sonhos, dê lugar a atos insanos. Lembremos do projeto nazista de criar a raça pura, suprema, ariana. Foram ceifadas milhões de vidas sem que nenhum avanço científico significativo tenha sido obtido. Questiona-se cada vez mais os limites da vida e da morte. Mas é preciso, é necessário, é indispensável que não só façamos, mas pensemos, reflitamos antes de fazer.
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