O Nobel para Sant’Ana

Por Emanuel Gomes de Mattos A eleição de Moacyr Scliar para a Academia Brasileira de Letras serviu ao menos para uma reflexão pessoal. Em …

Por Emanuel Gomes de Mattos
A eleição de Moacyr Scliar para a Academia Brasileira de Letras serviu ao menos para uma reflexão pessoal. Em 1992, quando assumiu o comando de Zero Hora, com carta branca para tomar decisões, o novo diretor de redação Augusto Nunes tentou varrer o espaço que Scliar ocupava como colunista do jornal. Foi convencido a mudar de opinião por um poderoso lobby que até então desconhecia.
Pouco mais de uma década depois, eleito imortal com apenas um voto de abstenção - fato cobrado ferozmente por dois colunistas de ZH - o médico e escritor Scliar agora é incensado por todos. Na semana passada, chegou a proferir palestra na redação, quando uma veterana jornalista questionou como ele conseguia ser tão produtivo. Modesto, Scliar repetiu o óbvio:
- O que se tem de fazer se faz. Sento no computador e escrevo. Se tu ficares remoendo sobre o que vais escrever, acabas não fazendo nada.
No dia seguinte, em sua coluna "A flauta do imortal", Paulo Sant?Ana relatou esse fato "que vai me servir de conselho daqui por diante. A mim me parece muito útil essa observação do Scliar", assinalou. (23/8/2003)
Ora, basta recuar algumas edições anteriores para flagrar a evidente contradição do mais popular articulista de ZH. Em sua coluna "A libido na escrita", Sant?Ana iniciou assim: "Eu gostaria de escrever como o fazem algumas pessoas, por ato instintivo. Isso ocorre da seguinte maneira: essas pessoas sentam no computador e saem escrevendo. Ou seja, não têm assunto, mas são impelidas a escrever pela sua natureza de escrevedoras. Há gente que nasceu para escrever e escreve mesmo sem ter assunto. Já comigo se dá diferente, como não tenho nenhuma tendência para ficcionista, só sento no computador quando possuo já um assunto. Tudo porque não sou um escrevinhador inventivo" (21/2/2003).
Se de fato deslumbrar-se diante do brilho do fardão de Scliar e abrir mão de suas convicções, é até possível que em alguns anos Sant?Ana reúna méritos para disputar uma cadeira na ABL, pois escreve com raro talento e sua tendência a polemizar com criatividade é insuperável.
Mas quando passar toda essa badalação, certamente voltará a ser o velho combatente, pois é vinho de outra pipa, só não admite quem não o conhece. Exatamente por isto mexe com corações e mentes em todos os lugares onde circula. Reproduzo a seguir três exemplos magníficos, colhidos somente este ano.
Na crônica "Rezemos pelo Papa", ao lembrar que João Paulo II disse ao completar 83 anos "que está chegando o dia de se apresentar a Deus e prestar conta de toda a sua vida", Sant?Ana confessou: "O que ele deixa para nós, pobres pecadores, que não temos mínima percentagem de suas obras? Este homem é um campeão. E declarou ontem ao mundo que é um mortal e está próximo o dia da sua morte. Só pode ser eterno quem for mortal. Essa foi também a sorte do próprio Cristo. Eu desde ontem passei a amar este Papa. E vou rezar todos os dias por este grande homem". (20/5/2003). No dia seguinte, confessou seu espanto com a comoção provocada no mundo católico ao escrever esse texto em forma de oração.
Na crônica "Tudo aponta para um erro", deu guarida ao pedido de uma advogada para o drama de uma prisão errônea. Foi contundente em sua indignação logo no início da coluna, quando declarou: "Não há nada que doa mais num homem, nem o câncer, nem ser espancado por um filho ou desprezado por sua mãe, que ser recolhido ao cárcere por um crime que não cometeu. A dilaceração espiritual e mental que se verifica numa pessoa acusada e presa ou condenada apesar de sua inocência é com certeza a aflição maior que se pode abater sobre um humano, capaz de enlouquecê-lo".
O fato é que um trabalhador estava recolhido há 24 dias no Presídio Central quando o autor do crime que lhe imputavam era outro, que se apoderara de seus documentos. E finalizou: "Eu não pude deixar de atender a este pedido de socorro. Não dormiria direito se não publicasse o dolorido apelo. Tudo que se possa fazer por um provável homem inocente é tarefa nobre. Vale a pena arriscar um esforço por uma grande causa". (6/7/2003). Na seqüência, as autoridades reconheceram o erro e soltaram imediatamente o rapaz que voltou ao convívio social.
O terceiro exemplo é mais emblemático. Na crônica "A liberdade sexual", Sant?Ana tocou em um tema que ainda é praticamente tabu ao citar o projeto de um deputado carioca que visa a autorizar o Estado a conceder ajuda psicológica a homossexuais que gostariam de voltar a ser heterossexuais. Em suma, pretende dissuadir pessoas de serem homossexuais ou "curá-las" dessa prática.
No decorrer da coluna, escreveu que ninguém tem condição de influir na opção sexual de uma pessoa. Há outras argumentações, mas repito parte do trecho final, impagável pela riqueza de humanidade que contém.
"Quem está apto ao amor espontâneo e consensual, seja esta partilha com qualquer outra pessoa de qualquer sexo, este não pode ser considerado um doente, mas sim um afortunado. Pois se Deus ou a natureza criaram o homem para a mulher, poderão ter criado um homossexual para outro homossexual". (9/9/2003).
Fiz questão de documentar esse arrazoado para finalizar com um apelo ao querido amigo Sant?Ana: deixe para o imortal Scliar a pressa de produzir textos. Perca horas remoendo assuntos que atormentam o dia-a-dia dos cidadãos explorados por pardais assaltantes ou vitimados em estradas assassinas. Essa missão jornalística poderá não render-te um fardão na Academia, mas é capaz de comover católicos, libertar inocentes da prisão ou tornar-te defensor do respeito à diversidade sexual.
Em resumo, se um ficcionista da estatura de Moacyr Scliar tem lugar assegurado na Academia Brasileira de Letras, o jornalista Paulo Sant?Ana, por sua combatividade reúne méritos suficientes para ser indicado à concorrer ao Prêmio Nobel de Literatura. Mas para seu azar, possuo um lobby infinitamente menor do que o de Scliar.
* Emanuel Gomes de Mattos é jornalista

Comentários