Precisamos falar sobre assédio

Por Flávia Lima Moreira, para Coletiva.net

Flávia Lima Moreira - Arquivo pessoal

O beijo forçado de um dirigente de futebol espanhol em uma atleta na premiação da Copa do Mundo de futebol mexeu comigo. Felizmente, mexeu com milhões de pessoas. Em mim, esse fato reabriu feridas. Quando decidi escrever novamente sobre isso, tive pesadelos terríveis. Quando decidi escrever novamente sobre isso, reforcei minha decisão de jamais calar quando o assédio vem à tona.

Desde que decidi ser jornalista, há 25 anos, tenho vivenciado coisas maravilhosas no ofício. Apesar de ter desejado ser correspondente de guerra ou jornalista investigativa, não segui por esse caminho. As primeiras oportunidades que surgiram foram para trabalhar como assessora de imprensa e comunicação na política. Agarrei-as e fui para Brasília para trabalhar na Câmara dos Deputados. Vi que quase tudo acontecia lá. O que não acontecia lá, passava por lá. E tudo aquilo foi me apaixonando. Nunca mais deixei. 

Política, muitas vezes, é mais do que ofício, é paixão. Por isso, trabalhei sempre para entregar o melhor que podia. Viajei por boa parte dos estados brasileiros. Trabalhei com partidos de esquerda e direita. Trabalhei com presidente da República, governador, prefeito, deputado, vereador. Trabalhei em campanhas eleitorais, mandatos, governos. Tive oportunidades e convites que poucos têm a sorte de receber e sempre que possível os aproveitava. 

Os anos foram passando e fui percebendo, infelizmente, que nem todos que estão nesse meio deveriam estar ali. Há de tudo na política (e na sociedade, sempre me lembra minha terapeuta). Há, inclusive, assédio. 

Quando trabalhei com assediadores, protegia os assediados. Sempre. É uma das minhas marcas, aliás. Nunca denunciei, porque acreditava que isso deveria partir das vítimas. Mas aconteceu comigo. E resolvi falar. Faço isso porque enquanto calarmos, tudo seguirá acontecendo. Hoje não tenho medo algum de dizer e repetir: fui vítima de assédio sexual.

Em um trabalho que realizei, meu então superior hierárquico, por diversas vezes quis levar vinho no meu quarto de hotel. As mensagens vinham por whatsapp e pessoalmente. Recusei todas. Mas, em um fim de tarde, aceitei sair para conversar e tomar uma cerveja porque outra colega iria junto. Ela acabou não indo e o chefe, então, aproveitou a ocasião para se oferecer, generosamente, para ajudar pessoas importantes para mim a conseguirem trabalho. Fiquei tocada, afinal, parecia uma ajuda genuína. A generosidade logo se tornou uma tentativa recorrente de invasão. Já não era só vinho que ele oferecia, ele também me chamava de "sereia" pelo whatsapp. 

Pensei muitas vezes se aqueles convites para o vinho teriam sido o real motivo da minha contratação. Eu não era competente o suficiente para estar lá desempenhando meu papel? Será que em algum momento eu havia dado liberdade para aquilo? Vi em mim a velha prática de tentar encontrar na gente o erro, a culpa, a responsabilidade. Vítimas de assédio fazem isso o tempo todo. 

Não bastava ser chamada de sereia ou recusar os vinhos. Ele foi além. Por duas ou três vezes, ele se ofereceu para me ajudar a tomar banho. Dizia ele que "tinha sabonetes especiais". Aquilo me destruiu... Nem sei descrever a humilhação que senti. Me sentia suja. Sentia nojo. Mas seguia trabalhando. Não queria prejudicar todo o processo do trabalho.

Com resultado promulgado, decidi que não poderia calar. Acompanhada de meu pai, um senhor de mais de 70 anos, fui à Delegacia da Mulher e registrei a ocorrência. Foi quando tudo começou a ficar ainda mais violento.

Para o meu assediador, claro, sou desequilibrada. Foi o que ele disse à polícia. Disse ele que eu estava me vingando porque não apareci em uma foto. Logo eu que, podendo, fico nos bastidores, sem querer projeção! Minha vaidade existe e ela é voltada para os resultados, não para aparições. O que me envaidece é contar as histórias que vivi, porque política é feita por gente. E é cada história linda que a gente encontra! 

Com a ocorrência feita, o processo iniciou e me trouxe esperança. Mesmo diante dos ataques à minha personalidade ou capacidade profissional, tenho a segurança de quem sou. Mas, do outro lado, há um sistema robusto e difícil de mover. O meu assediador sabe o mesmo que todos os assediadores contumazes sabem: se você não deixar uma prova muito descarada, você pode assediar quem quiser, quando quiser, onde quiser, por quanto tempo quiser. Por quê? Porque a palavra da mulher assediada não vale nada. 

Para o promotor, não havia hierarquia (mesmo com notas fiscais apresentadas). Os insistentes convites também eram normais para o promotor. E, pasmem, para o promotor é normal um chefe chamar sua subordinada de sereia. Mas pode piorar! Foi do promotor, aquele em quem depositei como cidadã a esperança de buscar justiça, que ouvi a pior de todas as coisas. Ele me disse que preciso "aprender a diferenciar assédio de cantada". Ele concordou que o que vivi foi muito pesado, mas "talvez tenha sido apenas uma nuvem negra sobre minha cabeça".

Cada vez que conto a minha história para outras mulheres, todas falam que foram assediadas ou conhecem alguma mulher que foi. Não denunciam por medo.

Não quero ser conivente ou cúmplice de assediadores. É o que fazemos quando calamos. Se vemos uma criança ser abusada e não denunciamos, somos cúmplices. Quando somos assediadas e não denunciamos, também. Não acredito na Justiça. Mas acredito na vida. Não desisti. Segui trabalhando na mesma área, saindo de casa todos os dias com medo de que tudo aquilo se repetisse. Não se repetiu. E tenho seguido a vida assim, entre medos e sonhos. Mas nunca calada. 

Enquanto o sistema não mudar, enquanto as mulheres calarem, novas gerações sofrerão as consequências devastadoras do assédio. A culpa não é nossa, embora alguns achem que sim. A culpa é sempre do assediador. Talvez também de quem faz as leis e daqueles que as aplicam. 

Só que calar não resolve. Denunciem. Dói. Deixa marcas e cicatrizes. Mas precisa ser feito. Espero que a sociedade assuma que assédio não é e jamais será cantada. Para isso acontecer, é preciso ter lado: ser denunciante ou ser cúmplice dos criminosos.

Flávia Lima Moreira é jornalista ([email protected]).

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