Chuva de estrelas

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"Nós somos tripulantes das estrelas."

Carl Sagan.

Ele continuava falando sem cessar sobre suas experiências de viagem. Eu já estava cansado, mas meu colega de viagem era um danado de um contador de estórias e não dava para deixar de lhe dar ouvidos:

"Era um belo final de tarde, com o sol tingindo de vermelho o mar. Eu estava lá, sentado em uma rocha no penhasco, lendo antigos relatos sobre o Finisterrae. Quando me dei conta, já era noite e procurei o caminho de volta. De repente, um clarão iluminou tudo ao redor. Olhei para o céu e vi uma chuva de estrelas caindo sobre o mar e sobre os campos. Quando cheguei à aldeia e contei o que havia visto, acharam muita graça, dizendo que eu estava sonhando.

Então, contaram que a única chuva de estrelas que havia acontecido naquele vez no lugar, fora há quase dois mil anos.

Que desde então, é chamado Campo de Estrelas."

O colega parou por um minuto, verteu um gole e continuou:

"- E sabes do mais fantástico de tudo?

É que eu nunca estive na Espanha e muito menos em Santiago de Campostela. Mas me lembro daquela noite como se fosse ontem."

***

E se foi depois de um longo abraço. Estava aliviado, como se lhe tivessem retirado um pesado fardo dos ombros. Mas... aquela história me deixou mais cismado do que devia. Chuva de estrelas? Como na lenda do Apóstolo? Com certeza, apenas um sonho, ou estaria ele me pregando uma bela e imaginosa mentira?

No entanto, eu sabia que memória é algo mágico e que está sempre nos surpreendendo. Por exemplo, lembramos claramente de nosso brinquedo favorito da infância, mas não sabemos onde guardamos as chaves do carro. Ou onde deixamos no caminho o copo d'água que fomos buscar na cozinha...

Em "Orlando", a escritora inglesa Virginia Woolf já nos alertava:

"A memória é uma costureira - e costureira muito caprichosa."

Ao contrário de um hard-disk, que armazena tudo o que queremos guardar, nossa memória é comandada por experiências de vida, por emoções - e nunca pela vontade. Para a neurociência, o processo de memorização é um mecanismo extremamente complexo, envolvendo reações químicas e circuitos elétricos que estão muito além do nosso entendimento.

O que pode ser importante para mim pode não ser para meu irmão ou para quem está ao lado. A memória do ser humano não é igual a de um computador - onde basta um clique para que dados sejam armazenados para sempre. E os neurocientistas nos lembram que diferenças cruciais entre os dois processos. Enquanto os computadores acumulam e organizam dados, nos humanos, a retenção de informação faz a base do nosso processo de aprendizagem. A memória é o elo entre o que fizemos - e sentimos - no passado e o que vivenciamos no presente momento. Assim, o cérebro nos fornece as chaves e as soluções para as questões de agora.

Nos ensinam, também, que estamos equipados com vários tipos de memória. Começando pela Memória Rápida (e superficial) que usamos no dia a dia, até a Memória Operacional, aquela que comanda nossas reações automáticas. E finalmente, a fascinante Memória Emocional, a mais caprichosa de todas as costureiras que habitam em nosso cérebro. Uma memória profunda e inescrutável, que armazena o que nos motiva e nos faz sentir vivos. É ela que mantém presente o passado que queremos preservar a qualquer custo.

Mas como explicar episódios que não vivenciamos, mas que estão transitando via descargas elétricas entre nossos neurônios? Como a chuva de estrelas que meu colega viu na Espanha, sem nunca ter estado lá?

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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