A formatura na lata de lixo

Por Flávio Dutra

No recipiente para lixo na beira do Guaíba estava jogada a moldura que reproduzia a clássica foto dos formandos, com suas becas e chapéus para a cerimônia de diplomação. Era do curso de Ciências Jurídicas e Sociais (Direito) conforme inscrição sobre as fotos. A cena insólita chamou a atenção do caminhante solitário, acostumado a registrar as incidências incomuns daquele espaço. Normalmente eram registros sobre os pássaros, abundantes e de variadas espécies, que ali habitam em busca de alimentos e água. Mas o repórter circulante jamais tinha visto algo parecido, como o descarte da lembrança de um momento que deveria ser de celebração pelos anos de entrega aos estudos.

O vilipêndio da moldura desprezava a tradição quase milenar da formatura, que simboliza a passagem para a vida profissional. Por isso, os alunos vestem trajes especiais que os diferenciam dos demais participantes da cerimônia e o capello, o chapéu de forma quadrada em seu topo, que significa a sabedoria adquirida durante os anos de estudos. Nas fotos, aparece ainda uma espécie de babador, o jabor, um acessório utilizado para distinguir os formandos, como um emblema de mérito e responsabilidade social, mas que talvez ficasse mais bem posicionado nos familiares, a babar pela conquista do estudante. Entretanto, toda essa simbologia foi jogada no lixo.

Por outro lado, a postagem da foto nas redes sociais mexeu com a imaginação dos ativistas de plantão e gerou uma série de comentários. E, claro, politizaram o gesto e virou polêmica. A maioria dos que interagiram apostou que se tratava da formatura de jornalistas ou advogados. Até entendo que o Jornalismo esteja enfrentando uma crise de credibilidade, mas achava que os advogados estavam por cima, um deles até foi nomeado recentemente para a mais alta Corte do País. Só que fui contrariado por intervenções como essas, sobre a motivação de quem se livrou da moldura: "Percebeu que tudo o que aprendeu na faculdade sobre a Constituição e o ordenamento jurídico foi jogada no lixo pelo STF"; "Acho que foi o advogado aquele que confundiu os príncipes, ao defender o golpista no Supremo"; "ou será alguém indignado com a sujeira que contaminou o judiciário corrompido?"; "Advogado decepcionado com o Judiciário, foi ganhar dinheiro no marketing digital"; "Foi discreto, tem togados que fazem em rede nacional"; "acho que aproveitou o momento para mostrar que os fins justificam os meios, depois de ter lido o Pequeno Príncipe de Maquiavel". Pela amostra dá pra constatar que a área do Direito está mais contestada que a da Comunicação.

Também sobraram postagens para outras profissões como a que acredita que a formatura era da "primeira turma de médicos EAD", e outra apela para a flauta esportiva: "Deve ser gremista". Não faltaram suspeitas de que se trata de "ex, com raiva, jogou no lixo", ou de quem "está em crise existencial; queria ser cantor e acabou jornalista", ou, mesmo, que "seria vingança de uma segunda ou terceira pessoa?", e ainda, o fato definitivo, de que "certamente alguém foi descartado". 

Nada disso, porém, parece responder a intrigante questão: afinal, o que levou a pessoa a se desfazer dessa forma do símbolo de um momento tão memorável? Não faço ideia, só sei que o gesto rendeu mais uma coluna e que até um descarte no lixo vira polêmica nas redes sociais. 

(Texto inspirado na sugestão de Cláudia Guerreiro de Lemos)

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

Comentários