A quem pertence a liberdade
Por José Antonio Vieira da Cunha

O resumo da ópera é o seguinte: o aplicativo Telegram não pode seguir sendo conduto para manifestações de ódios e antidemocráticas sem assumir sua responsabilidade.
Então: até que ponto a sociedade - e seu equilíbrio democrático - pode tolerar a leniência no combate às notícias falsas, à desinformação, aos discursos de ódio, à pregação de movimentos antidemocráticos como o nazismo ou o supremacismo racial?
O aplicativo Telegram admite todas estas deformações sob o pretexto de que não está aí para censurar posicionamentos ou opiniões e, portanto, não assume nenhum mecanismo que possa impedir qualquer manifestação. Quer dizer, exercita em seu discurso oficial o entendimento de que a liberdade de expressão é um direito absoluto. A questão é que, ao adotar esta lógica, o meio se transforma ele mesmo em um eficaz agente de distribuição de ofensas a outros direitos do cidadão, a começar pelo direito à sua intimidade, sua vida privada, sua imagem, sua honra. Torna-se um agente do mal ao deixar fluir os discursos ameaçadores para a democracia, aqueles que pregam abertamente a violência ou, não menos grave, planejam e disseminam a ideia de um golpe de estado.
Incitar ódio e violência, pregar contra a democracia e o estado de direito são crimes. Ora, se a plataforma é permissiva em relação a mensagens deste tipo e às notícias falsas, ela torna-se também corresponsável por aquilo que dissemina, certo? Pois aí está o nó: não há como responsabilizar o Telegram, opção na qual se refugiam os que atacam a democracia e o bom senso, porque a empresa não tem representação no Brasil nem, pelo que se viu no noticiário das últimas semanas, tem a delicadeza mínima de responder às demandas apresentadas pela Justiça.
Não por acaso, o aplicativo está na ordem do dia das demandas avaliadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, que analisa inclusive a possibilidade de proibi-lo no Brasil mesmo que apenas durante o período eleitoral. Todo foco do TSE reside no fato de que o Telegram não tem representantes aqui, com o que tem conseguido se safar das demandas apresentadas pelo Judiciário, ignorando a legislação brasileira e suas autoridades. O Tribunal já procurou por pelo menos quatro vezes a direção da empresa que pertence a um russo e tem sede em Dubai, nos Emirados Árabes.
Não só o TSE; também o Ministério Público Federal e o Supremo Tribunal Federal, este no inquérito das fake news, encontram dificuldades devido a esta falta de representação no país. O marco civil, lembrou o STF outro dia, só responsabiliza plataformas digitais na hipótese de ignorarem ordens judiciais - situação que não tem nada de hipotética no caso do Telegram, pois não? E em debate atualíssimo no Congresso circula o projeto de lei das Fake News, que entre tantas disposições determina que provedores de serviços pela internet devem ter responsável no Brasil.
Agora mesmo, o presidente do STF foi bem explícito, e surpreendentemente de forma quase vulgar, quando disse que o Brasil "não é casa da sogra para ter aplicativos que façam apologia ao nazismo, ao terrorismo, que vendam armas ou que sejam sede de ataques à democracia que a nossa geração lutou tanto para construir".
É o que temos; há um limite admissível para a liberdade de expressão, com a consequente responsabilização de quem exerce este direito. Sem vigilância nenhuma por parte da sociedade, através das autoridades que constitui para representá-la, aplicativos como Telegram são usados para todo tipo de desinformação e apologias condenáveis. Como fez o Estado Islâmico, que usou o Telegram para fazer propaganda e recrutar combates. Nós não queremos isso.