Achacinar, achacinato

Por Fraga

A língua é viva: todo dia, em todos os lugares, surgem palavras novas. Não foi diferente dia 6 de maio, na favela do Jacarezinho, Rio. 

Embora o surgimento de uma nova palavra leve às vezes anos, até ela ser disseminada e consolidada no vocabulário de um povo ou uma região, naquela data, naquele local, levou apenas algumas horas. 

Era o dia da Operação Linguisticida, onde a brutalidade ia ser professora e ensinaria para aquela cambada de pobres e pretos favelados como aprender rápido um novo verbo, um novo substantivo.

O grupo de gramaticianos, armados de argumentos de grosso calibre, invadiram o Jacarezinho em busca de uns falantes que traficam palavras ilícitas. Nem todos falam o mesmo palavreado ilícito no Jacarezinho, mas o poder paralelo verbal existe, é um fato, e nenhuma força gramaticial conseguiu até hoje acabar com o comércio ilegal de verbetes.  

Dessa vez, sem conhecimento das autoridades verbalizadoras, os gramaticianos, sempre positivos e operantes, chegaram atirando vocábulos poucas vezes visto pela população da favela. As rajadas de violento vocabulário atingiram, além dos contraventores orais, mulheres e crianças.

Do mortal exercício verbal surgiu, barbaramente, o verbo achacinar. E todos lá logo assimilaram o doloroso ensinamento dos gramaticianos. 28 vidas foram usadas para estabelecer a conjugação desse inédito verbo, conjugado no pretérito perfeito simples, na terceira pessoa do plural fardado: eles achacinaram.

Achacinar, segundo o tiroteio coloquial gramaticiano, é a coletivização da chacina: ao ser pronunciada tantas e costumeiras vezes por tantos e tantas pessoas correndo com medo do vocabulário ameaçador, fugindo pra salvar o vocabulário vital de cada um, a chacina se impõe no meio falante e no vira e revira vira verbo. Achacinar é a chacina tornada comum, popularizada e a seguir dicionarizada. 

Dela deriva a segunda palavra mortalmente aprendida: achacinato. O assassinato elevado ao neologismo gramaticiano. Esse substantivo, mais substancial que outros horríveis ditos nas favelas cariocas, é sonoro o bastante pra entrar de imediato no idioma assustador dos moradores. E pela força atemorizadora desse novo polissílabo, ganha repercussão e logo será assimilado pelo país inteiro.

Juntos, achacinar e achacinato, são uma aula de como alterar o léxico, banalizar a linguagem e fixar duramente uma lição. Os gramaticianos foram os mestres, as vítimas, suas famílias e os vizinhos, a sua classe. E em vez dos alunos matarem a aula, a aula matou os alunos. 28 não vão passar de ano. Incontáveis feridos pelo tiroteio verbal nunca mais esquecerão os verbetes. O pavor diploma as pessoas. 

Anote aí: achacinar e achacinato. Dia 6, no Jacarezinho, foram essas as novas palavras incorporadas à nossa machucada língua. Quais serão as próximas? Só o programa escolar dos gramaticianos dirá. 

A língua é viva. E pros mais desfavorecidos, pode ser letal. Porque a expressão segurança pública não faz o menor sentido lá entre eles.

 

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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