Amenidades, serenidades e pequenas alegrias

Por Márcia Martins

Hoje, ao contrário das últimas colunas, não quero escrever sobre nenhum tema triste e desesperador. Afinal, desde 16 de março do ano passado, quando mergulhei no mais completo isolamento, assinalando nesta quarta-feira, 31 de março, 381 dias de confinamento total, sem esta palhaçada de distanciamento controlado, invariavelmente me pego falando da Covid-19, dos afetos que já partiram em decorrência do vírus e da irresponsabilidade dos governantes no combate à doença. Não serei insensível à morte de 314 mil pessoas no Brasil, mas tentarei trazer amenidades, serenidades e pequenas alegrias. 

Porque mesmo no meio de tanta desgraça, vez ou outra, até que é permitido vislumbrar pelas janelas da vida algumas fissuras de gentilezas. Gestos tão mínimos que neste cenário de pandemia e distanciamento assumem tamanhos grandiosos. Foi assim que meu mundo ficou mais doce e envolvente com uma sacola cheia de rapaduras de leite entregue pelo meu irmão, através das grades do edifício, numa rápida passagem dele pela cidade para um exame de saúde. Márcia é uma formiga e adora doces, mas ama de paixão rapaduras de leite e qualquer guloseima com ingrediente de coco. 

O pacote com rapaduras de leite, de comer chorando de tão deliciosas, foi um presente de uma amiga da minha cunhada lá de Butiá que é sabedora da minha idolatria pelo doce. Escondi a balança do banheiro, para não acusar o aumento de peso, e devorei, num tempo considerado razoável, os doces mandados lá da cidade onde residem meu irmão, cunhada e afilhado. Fiquei tão animada com a lembrança que me arrisquei na elaboração de um almoço menos trivial no sábado. Não puxei aos dotes culinários de mamis Mirthô e acho muito sem graça cozinhar para mim mesma.

Mas nem só de gulodices vive um ser humano. É preciso também alimentar e distrair o cérebro. No sábado, de tardezinha, recebo um whats de uma amiga, vizinha aqui da Cidade Baixa, com quem trabalhei no jornal Zero Hora e que se revelou uma excelente escritora. Ela indaga se - obedecendo todos protocolos que alguns governantes dizem não ser importantes e caçoam deles - pode me alcançar - também pelas grades do edifício, uns livros que ela escreveu em 2020. Assim, no início da tarde de domingo, começo a escolher qual dos cinco títulos que a amiga deixou que irá inaugurar a leitura dos poemas e crônicas.

De quebra, estou desde o dia 6 de março, aproveitando um período estendido de guarda compartilhada do neto canino Quincas Fernando. E cachorro, não há como negar, é a melhor companhia que existe. Como a minha filha iniciou um novo estágio e não queria deixá-lo tanto tempo sozinho na sua casa no primeiro mês, acertamos que ele ficaria comigo. Convivemos na mais perfeita harmonia. Ele me entende. Sabe perfeitamente quando eu estou mais triste. Não puxa conversa se sente que estou cabisbaixa. E minha obrigação é mimá-lo, afogá-lo e levá-lo para brincar com os amigos no cachorródromo lá pelas 17h, desde que não chova.

Sempre de máscara. Sem muita conversa com outros tutores. Mantendo uma distância superior a 2 metros. Sem dividir potes de água com outros cachorros. Sem qualquer aproximação se alguém comparecer ao cachorródromo sem máscara ou tirá-la em qualquer circunstância. E de 5 em 5 minutos, banhar-me no álcool em gel. Na volta, o caminho para casa é feito às pressas, a fim de caprichar na higiene do cachorro e naquele ritual básico de toda pessoa quando chega na sua residência em época de Coronavírus.

Claro que tais amenidades, serenidades e doses homeopáticas de alegrias não conseguem apagar o terror que estamos vivendo com a pandemia da Covid-19. Mas oferecem um alívio, ainda que provisório. As lágrimas cessam por minutos. A desesperança some por um período do cotidiano. A descrença tira alguns segundos de folga. E por breves, mas revigorantes espaços necessários, até eu esqueço que estou no Brasil.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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