Assédio reverso

Por Flávio Dutra

Sou um recontador de histórias. Ouço na mesa ao lado, acrescento uns adjetivos e advérbios e repasso adiante. É o caso a seguir, que trata de um tema que está na ordem do dia: o repúdio ao assédio em todas as suas formas. O relator original da situação, que classifico como escabrosa, foi meu amigo Maurício, aqui identificado com nome trocado, por razões óbvias.

Certo dia, ele interrompeu minha labuta no computador e, quase sussurrando, me revelou a enorme angústia que o atormentava. Era sobre assédio e ele se dizia a vítima.

Maurício é um quarentão bem apanhado e bem casado, homem temente a Deus e realizado pessoal e profissionalmente. Até diria que é uma reserva moral nestes tempos tão conturbados e contraditórios. Pois, são manifestações destes tempos que angustiam o amigo, que passou a receber mensagens pra lá de despudoradas de moças e senhoras tidas como respeitáveis. Não uma, nem duas mensagens. Várias. Mensagens carregadas de erotismo, convites safados, propostas indecorosas, declarações com palavreado de fazer inveja àquele ex-presidenciável flagrado em negociações escusas na Lava Jato. E, pasmem, mensagens ilustradas por muitos nudes, inclusive das partes pudendas.

Foi demais para o nosso amigo que, diferentemente de Chico Buarque em sua nova música, não está disposto a abandonar o lar para uma aventura fugaz. A perturbação levou-o a procurar uma explicação para esse desordenamento nas relações entre homens e mulheres.

Maurício jura que não incentiva as assediadoras, por isso ganha estatura moral para se posicionar sobre o tema. Ele entende que a falta de pudor, a ausência de valores, o vale tudo nas relações começou com o falso, segundo ele, empoderamento das mulheres. O desabafo foi contundente:

- É esse tal empoderamento, que começou com a queima de soutiens e chegou às peladonas em protestos. Depois que acabaram com o namoro só as quartas-feiras, sob severa vigilância dos pais, aí liberou geral e até sexo no primeiro encontro já estão praticando. Uma pouca vergonha.

Ao ouvir a desdita do amigo confesso que também me perturbei, eu que, como ele, eleva o gênero feminino à condição de quase divindade. Mas também fiquei ligeiramente invejoso, uma vez que só recebo mensagens masculinas, flautas futebolísticas e besteirol da política.

Parece que o Maurício leu meu pensamento e, veemente como candidato em horário eleitoral, sentenciou para a pequena plateia que se formara após o desabafo dele:

- O que o nosso país está precisando mesmo é de uma reforma moral! Chega de empodredamento - e mostrou satisfação com a corruptela que acabara de inventar.

Admito que tenho receio de concordar com as teses do Maurício para não ser alvo de caldáveis iradas que, sim, existem, embora em número reduzido. Temo ser vítima de um masculinicídio, que seria de responsabilidade "das tais redes sociais, Tinder, Par Perfeito e outras que banalizaram as relações e onde as pessoas ficam se oferecendo umas às outras, provocando traições e conflitos", - segundo denunciou o parceiro, revelando um suspeito conhecimento sobre as redes acusadas.

A propósito, questionei outro amigo da roda se ele frequentava Tinder e similares e a resposta foi pronta e direta:

- Claro que não, imagina se encontro o perfil da minha mulher ali!

Argumentei que não se preocupasse, pois, como no caso dos traídos, "são coisas que colocam na nossa cabeça", para usar uma besteira corrente sobre os efeitos da infidelidade feminina. A réplica dele foi mais surpreendente:

- O pior corno é o que quer saber.

Foi, então, que me recolhi a um silêncio obsequioso e fui buscar guarida nas redes sociais mais sérias para acompanhar os candentes debates entre petistas e bolsonaristas. Olha, só faltaram os nudes para ficarem tão obscenos quanto as mensagens recebidas pelo meu amigo. Que tempos vivemos!

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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