Brasil é um grande projeto assassino de preto

Por Márcia Martins

Ultimamente, para ser mais exata desde 16 de março, quando entrei no período de isolamento total em decorrência da Covid-19, coleciono em doses máximas insônias, noites mal dormidas, sonos interrompidos e pesadelos terríveis. Como tenho os dias à minha disposição, às vezes, recupero o sono no meio da tarde, e tento acelerá-lo à noite com o auxílio de goles de vinho ou os famosos comprimidos antidepressivos de efeito sedativo e relaxante. Desta forma, procuro domesticar um pouco a falta de sossego que me aflige - assim como qualquer pessoa de bom senso neste País - e que me traz os piores reflexos possíveis (não só relacionados ao sono, mas descrença, medo e uma angústia do que ainda está por aparecer).

Na madrugada de terça-feira, 2 de junho, foi diferente. Nada que me trouxesse um sinal de sono. Fui dormir quase às 4h com uma sensação de impotência e de incapacidade. As palavras do rapper Emicida, ditas no programa Papo de Segunda, no canal GNT, que, entre outros assuntos, abordou a morte de George Floyd, ex-segurança negro, asfixiado após ter o pescoço prensado pelo joelho de um policial branco em Minneapolis, Estados Unidos, não saíam da minha cabeça. "A gente está em solo inimigo, a gente tem que se proteger como a gente puder, porque a gente está por nossa conta e risco, neste grande projeto assassino de preto que é o Brasil", disse o compositor negro.

Emicida lembrou do caso do João Pedro, assassinado durante uma operação policial em São Gonçalo, Rio de Janeiro, em 18 de maio. "O quão destruidor de futuro, não só das pessoas pretas, mas do futuro deste País é viver num lugar onde uma criança de 14 anos que tava em casa cumprindo a sua quarentena é alvejada por uma bala de um grupo de outras 72 que arrebentaram a sua casa", desabafou na segunda-feira à noite. E, indignado com o genocídio da população negra, ele lembrou de quantas crianças pretas mortas pelo Estado Brasileiro em tão pouco tempo. "Agatha, Davi, João, João Pedro, são alguns casos aqui que ganharam visibilidade né e o que acontece com quem mata um inocente neste País, principalmente quando veste uma farda? Nada, mano!".

Ainda impactada com o depoimento do Emicida, acordei tarde na terça-feira e ao acessar o twitter, vi a campanha #blackouttuesday, propondo justamente a reflexão para que as vozes negras sejam escutadas, um basta no silenciamento e o fim do genocídio. E alguém, numa das tantas postagens, citou uma declaração da Angela Davis de que em se tratando de políticas públicas não basta não ser racista, é necessário ser antirracista. Distraída ao tentar acompanhar a velocidade das postagens sobre a hashtag, pensei quantas vezes eu poderia ter sido mais enfaticamente antirracista, nas situações em que eu deveria ter sido mais incisiva e utilizar o meu privilégio de pessoa branca para ajudar a desconstituir o racismo.

No meio de tais divagações, tomei conhecimento, através de postagens da minha filha, uma das pessoas em que mais confio em assuntos de justiça social e engajamento nas lutas igualitárias, do caso da blogueira Larissa Busch, que roubou a vaga de uma cotista para entrar na UFRJ. No seu Instagram, a carioca assume que burlou o sistema de cotas se declarando parda e pediu perdão aos que foram preteridos por ela, que hoje se enxerga branca. E fica tudo bem, tudo legal, não é? A moça reconhece seu erro, diz que não se formou porque percebeu que não merecia estar ali e que abandonou o curso porque não aguentou a culpa. Parece que ela resolveu se desculpar depois que foi denunciada nas redes sociais. E considera assunto encerrado. É isto?

Não. As coisas não podem continuar assim. A impunidade precisa imediatamente terminar. E tudo fica embaralhado. O George Floyd e as manifestações em protesto pelo assassinato de um negro por um homem branco. As palavras do Emicida e seu desabafo de que os negros, no Brasil, vivem com medo num solo inimigo. A apatia da população brasileira frente ao frequente genocídio de negros pela polícia. A hashtag blackouttuesday. A frase da Angela Davis. A minha postura antirrascista que deve ser mais enfática, mais propositiva, mais comprometida. E do alto de sua branquitute que lhe enche de privilégios, a moça de "boa índole", admite o roubo da vaga de alguém que realmente precisava e pede desculpas. Não Larissa, sua desculpa não vale nada. Isto é crime. Assim como o racismo.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

Comentários