Cinema na tevê

Por José Antonio Vieira da Cunha

O hábito iniciado na pandemia, de acompanhar séries e tentar identificar filmes surpreendentes ou, no mínimo, 'diferentes', persistiu, porque inevitavelmente quem gosta de cinema acaba se apaixonando também pelas belas surpresas que o streaming oferece.

Começo pelo filme "RRR: Revolta, Rebelião, Revolução", que está longe do convencional e não por acaso representou a Índia no último Oscar. Não ganhou, mas sua música, "Naatu Naatu", levou o troféu de melhor canção original e, no filme, faz a trilha de uma dança espetacular. O roteiro chega a soar meio rocambólico em certo momento, mas nada está ali a passeio. É ambientado no século XIX, quando o império britânico e sua lógica colonial oprimia os indianos, e atrai também ao englobar diversos gêneros - tem ação, suspense, aventura, romance e boas pitadas de fantasia tão equilibrados que as mais de três horas de duração não cansam ninguém. 

Produção franco-belga, "O Destino de Haffmann" está ambientado na Paris ocupada pelo exército nazista nos anos 40 do século passado. Imagem e linguagem não fogem do convencional, mas a história do judeu proprietário de uma joalheira que abriga um casal parisiense tem boas reviravoltas e encanta pela naturalidade como corre o enredo. 

Tem destaque brasileiro também, como "Deserto Particular", cinema maduro na técnica e na abordagem de um assunto delicado ao envolver a temática LGBTQUIA+. O diretor Aly Muritiba não erra em nada ao conduzir a história do policial de Curitiba que vai ao Ceará em busca da namorada virtual que desapareceu. É Brasil em sua essência, em um filme bem resolvido, com linda fotografia. Ganhou mais de um prêmio, em festivais no Brasil, Itália, Espanha e Israel.

No segmento séries há opções estupendas, com vários exemplos de ótimas histórias que não se restringem às boas surpresas sul-coreanas ("Round 6", "O mar da tranquilidade" e "Uma advogada extraordinária", entre tantas) nem vêm de Hollywood. Tem a sueca "Areia Movediça", por exemplo, sobre o massacre cometido em uma escola. A história é apresentada de trás para a frente, mas suas motivações e autoria só são conhecidos mesmo no final. As cenas são realistas e em certos momentos com violência impactante ao tratar de assuntos bem presentes como sexualidade e relacionamentos abusivos. Fotografia excelente em locações irresistíveis na Suécia e na França.

"O Homem das Castanhas" é da Dinamarca, rodado num subúrbio de Copenhagen. O nome vem de um pequeno boneco produzido com castanhas e que marca a assinatura provocadora do assassino ao surgir nas cenas de crime, em um roteiro cheio de mistério, política, suspense e ambição. Enredo bem amarrado e uma fotografia linda exibindo nuances da capital dinamarquesa.

"Borboletas Negras" vem da França com um roteiro desafiador e complexo que vai sendo desvendado aos poucos, à medida em que o integrante de um casal conta como ele e a companheira cometeram assassinatos desde quando jovens. São crimes hediondos que perturbam e acabam envolvendo o candidato a escritor convidado a registrar as memórias do homem - que não se mostra nada arrependendo do que fez, registre-se.  

"Marcella" também vem do Reino Unido com suas três temporadas ótimas, lideradas por uma detetive cuja competência não é abalada pela insegurança e infortúnios que carrega. Os roteiros oferecem impacto, inteligência e dramas psicológicos que envolvem o espectador. E, como adicional importante, Londres não deixa de ter destaques nas tramas.

"Landscapers" circula pela capital londrina também com a história real de um casal burocrata, ele contador, ela bibliotecária, interpretados com a excelência costumeira por David Thewlis e Olivia Colman. O casal assassinou os pais dela e vive modestamente em Paris até o crime ser descoberto, 20 anos depois. A série oferece um excelente bônus ao exibir cenas de filmes antigos que o casal adora ver na tv com seus atores favoritos, Gary Cooper e Gérard Depardieu entre eles. "A série policial que me deixou de queixo caído", confessou o crítico Ticiano Osório.

Conflitos na Síria, terrorismo e contra-espionagem de primeira estão na série "Conexões", excelente produção da França e do Reino Unido com os ótimos Eva Green e Vincent Cassel. Tentam sobreviver em meio a intrigas políticas e traições em ações de espionagem envolvendo os dois países e a União Europeia. Portanto, série atualíssima no atual contexto em que a Inglaterra lambe feridas provocadas pelo Brexit.

Por último, e não menos importante: "Crimes em Délhi", que o amigo Fraga recomendou, é outra produção indiana de primeira linha, e desta vez mostrando o país com todas as suas contradições e dificuldades sociais e econômicas, sem ser panfletária. A primeira temporada aborda um caso real de estupro cometido por uma gangue, uma atrocidade descrita apenas nos depoimentos dos autores em relatos tão reais que dispensam o apoio de imagens. Como disse o crítico Sérgio Vaz: "É impossível o espectador não ficar absolutamente perturbado - como ficam vários dos personagens da série, pensando sobre como afinal de contas é possível haver seres humanos capazes de tamanha crueldade contra o outro ser humano".

Com exceção de "Landscapers" e "Deserto Particular", da HBO, todas as demais produções citadas aqui são da Netflix. Divirta-se!

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à Agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo (de Cachoeira do Sul), a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. E tem duas passagens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem quatro netos.

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