Da primeira vez que me assassinaram

Por Márcia Martins

Num dos textos mais belos e derradeiros do nosso querido Mario Quintana, o poeta desabafa: "da primeira vez que me assassinaram, perdi um jeito de sorrir que eu tinha, depois, a cada vez que me mataram, foram levando qualquer coisa minha". Posso bradar aos quatro ventos para que todos e todas ouçam que estou viva, que ainda estou imune à Covid-19, que sou uma resistente ao assinalar 374 dias de isolamento nesta quarta-feira, 24 de março. Mas, confesso sentir-me a cada novo dia, com o crescente número de vítimas do Coronavírus, um ser apunhalado, um tanto abatido, um tanto morto e sem vontade de sorrir.

Não consigo fingir que não está acontecendo este genocídio no Brasil. Não sei esconder minha tristeza com a irresponsabilidade dos governantes, nas três esferas (federal, estadual e municipal) na condução de uma política coerente e eficaz do controle da Covid-19 e de vacinação. Não há motivo para gargalhar ou até mesmo deixar escapar um sorriso, ainda que leve e despretensioso, quando sei que famílias estão contando os seus mortos.

Por isso, na terça-feira, 23 de março, dia do recorde de mais de três mil mortes por Covid-19 no Brasil, em que o Governo Federal reduziu de 57,1 milhões para 47,3 milhões a previsão de doses de vacinas a serem entregues até final de abril, eu deixei partir o restante da minha dose de esperança, de otimismo e de fé na humanidade. Assim como Quintana, lentamente, mas sem nenhuma possibilidade de volta, vou morrendo um pouco a cada novo dia, sendo assassinada a cada nova noite e com um medo absurdo do que as notícias irão me apresentar na estatística dos mortos pelo Coronavírus.

Meu assassinato se completou com o pronunciamento do presidente Bolsonaro, em rede nacional de rádio e televisão, em que o mandatário maior da Nação, mentiu várias vezes. E parece aquela lenda/história que a pessoa, de tanto mentir com muita convicção, termina por acreditar que é verdade a mentira que fala. Bolsonaro debocha, sem piedade, dos mais de 295 mil brasileiros e brasileiras que morreram de Covid-19 desde o início da pandemia no Brasil, ao dizer, em outras palavras, que liderou o combate à doença e, principalmente, que nunca foi contra as vacinas.

Segundo matéria no G1 sobre a fala do presidente, três grandes contradições (ou mentiras) podem ser detectadas. Bolsonaro disse que intercedeu junto à Pfizer a antecipação de doses de vacinas, mas omitiu que em agosto de 2020 recusou 70 milhões de doses da fabricante. Afirmou que 2021 será o ano da vacinação dos brasileiros, só que em dezembro disparou que "não tinha de ir atrás de vacinas". Aliás, a defesa agora das vacinas, contrasta com críticas anteriores ao método de prevenção quando disse que não "seria responsável se alguém tomasse a vacina e virasse jacaré".

É um ato desesperador ver cadáveres se acumulando, enquanto o presidente mente que está preocupado. É angustiante saber que as despedidas fúnebres não estão ocorrendo, e Jair Bolsonaro manda comprar vacina na casa da mãe. E que homens e mulheres de todas as idades seguem tombando pela doença e enfrentam o esgotamento do sistema de saúde, mas o presidente, adepto da necropolítica, faz deboche com a falta de ar causada pela doença. 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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