Deslembranças

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"A única e verdadeira viagem

é aquela que se faz na memória."

Carlos Drummond de Andrade.

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Poucos poetas além de um Drummond ou um Manuel Bandeira sabem descrever a misteriosa alquimia da memória afetiva. Eles recolhem palavras ao vento para esculpir versos ou frases que replicam com inacreditável semelhança, lembranças (ou sonhos?) que nos assombram nas noites sem lua. Eu lembro bem quando via minha tia tomando chá com biscoitos e na mesma hora sentia na boca o sabor das madeleines de Marcel Proust. Até mesmo hoje, os versos de Manuel Bandeira sobre os casarões de sua infância no Recife me conduzem de volta ao sobrado da Vasco da Gama onde fui uma criança feliz.

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Li um famoso neurocientista explicar que nossa memória afetiva é um desejo inconsciente de permanência no passado. Mas a boa poesia e a literatura também nos falam sobre a permanência. Em sua busca pelo tempo perdido, Marcel Proust escreveu que a memória não reside apenas no cérebro, mas está presente em todo o corpo:

"Parece existir uma memória dos membros, 

pálida imitação da outra, que dura mais tempo, 

assim como certos animais ou vegetais ininteligentes vivem mais que o homem. 

Nossas pernas e os braços estão cheios de lembranças entorpecidas."

Para os críticos, Em Busca do Tempo Perdido, embora percebido como uma narrativa exemplar da memória, não reproduz as lembranças reais do escritor, mas as memórias fictícias de um personagem-narrador chamado Marcel. Depois de visitar a copiosa escrita proustiana, os poetas precisaram de escassas palavras para dizer o mesmo. Como Carlos Drummond de Andrade:

"...de tudo ficou um pouco".

Ou Alvaro de Campos, quando lamenta suas perdas:

"Porque esqueci de quem fui?

Porque deslembrei quem eu era?".

"Fiz de mim o que não soube.

E o que podeia fazer de mim, não o fiz".

Consciente de que era feliz sem o saber, faz um heteronômico explicar o que sente:

"Mas a saudade que sinto

Não é nem do passado nem do futuro".

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Curiosamente, foi uma distante poetisa, a indiana Kiran Desai nos dizer de como transformamos o passado:

" Cada vez que você olhar por sobre o ombro

vai enxergar um passado diferente daquele

que você deixou para trás".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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