Deslembranças
Por José Antônio Moraes de Oliveira


Acredito que existe uma misteriosa alquimia nos versos dos grandes poetas. É quando eles, meio distraídos, colhem algumas palavras no vento que passa. E nos embarca em uma viagem ao reencontro das melhores lembranças guardadas dentro de nós. Assim deve ter sido com as madeleines de Marcel Proust, com os casarões antigos de Manuel Bandeira e também com o solo da clarineta do Érico Veríssimo.
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Lembranças e deslembranças nem sempre caminham conosco e por vezes nos abandonam no meio do caminho. Como aconteceu quando o poeta Alvaro de Campos lamentou ter esquecido de si mesmo:
"Porque esqueci quem fui quando criança?
Porque deslembrei quem então era eu?"
Assumindo a consciência de que era feliz sem o saber, o poeta tenta recuperar tardiamente os pedaços perdidos do passado:
"Fiz de mim o que não soube.
E o que poderia fazer de mim, não o fiz.
E vejo um sorriso alheio de quem eu fui".
É quando um gesto ao acaso, uma frase solta no ar ou um rosto anônimo na multidão disparam um redemoinho de lembranças.
Os estudiosos dizem que o esquecimento é um escudo que inventamos para nos proteger de sofrimentos. Mas que também pode ser um destruidor dos tesouros da memória.
Receio que algo parecido está acontecendo agora quando escrevo estas linhas. Mesmo sem vasculhar o passado, pressinto o peso de um baú carregado de fragmentos de momentos, dias e horas passadas. Ora é a imagem do tio que conta estórias do Boitatá e da Mula sem Cabeça. Ora, o perfume da figada borbulhando nos panelões de ferro da Avó Augusta. E ainda chega o som do riacho que corre em um quintal que não existe mais.
Também permanecem imagens, ruidos e sensações que davam medo ao menino perdido longe de casa. Que não esquece os vultos que surgiam na porteira da fazenda, fazendo os cachorros uivarem como lobos. Chegavam com as nazarenas levantando poeira, largavam os atavios de montaria na porta e enchiam a casa com a fumaça azulada dos palheiros. Pareciam ladrões de cavalos ou coisa pior, até que o avô chegava para dizer que eram tropeiros que vinham comprar gado.
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Mesmo na hora de dormir, ele continua a ouvir ruidos e vozes na casa silenciosa. Para afastar os fantasmas, invoca o Anjo da Guarda. Depois, adormece embalado pelas peuenas felicidades do dia - o relincho do potro recém domado, o perfume dos pêssegos maduros, as coxas da prima Amelita ao vento, se balançando na figueira do terreiro.
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