Detetive de almas

José Antônio Moraes de Oliveira

"Todos os homens podem ser criminosos, se tentados; 

todos os homens podem ser heróis, se inspirados".


"A Sabedoria do Padre Brown".

Quais teriam sido os motivos que levaram Gilbert Keith Chesterton a escolher a figura de um pequeno e apagado sacerdote católico para sua incursão na literatura policial? Existe um lado ainda mais intrigante na questão - o surgimento do padre-detetive aconteceu no momento em que o catolicismo de Roma era encarado no mundo anglo-saxônico com reserva e suspeição. 

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Foi no conto A Cruz Azul, de 1910 que o Padre Brown aparece pela primeira vez. E curioso, o personagem, um homem simples de Deus, mas dedicado conhecedor das Escrituras, acontece muito antes da adesão do escritor ao catolicismo. A crônica de sua conversão é bastante conhecida: ela teria acontecedo quando G.K. Chesterton vai falar em uma comunidade anglicana de Yorkshire, em plena Inglaterra rural. Lá, encontra John O'Connor, um padre católico que convive com graça e harmonia em ambiente hostil ao catolicismo romano.

Enquanto caminham juntos, eles discutem religião e teologia; nasce então uma amizade que perduraria até a morte do escritor, 32 anos mais tarde. Em sua auto-biografia, Chesterton conta ter ficado impressionado com a humildade do Padre O'Connor e por sua profunda compreensão das falhas e grandezas da condição humana. Ele registra seu reconhecimento na bela dedicatória que fez em O Segredo do Padre Brown:

"A John O'Connor, cujas verdades são mais estranhas

do que minha ficção, com uma gratidão maior que o mundo".

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Uma das prováveis razões que teriam motivado Chesterton a criar um detetive católico foi um breve e fortuito episódio que aconteceu quando estava em companhia do Padre O'Connor. Naquele momento, alguns jovens irreverentes, estudantes de Cambridge, passam pela dupla e comentam: 

"O clero tem a sorte de viver longe da realidade

sem saber do mal que existe no mundo". 

A ironia provoca uma reflexão em G.K.Chesterton: "comparados com um sacerdote como o Padre O'Connor, os jovens não conhecem mais do verdadeiro mal do que uma criança no colo da mãe". Foi quando lhe ocorre explorar o não-reconhecimento do mal pelas pessoas. E passa a escrever as estórias de um padre-detetive que, aparentemente nada sabe do mal e de maldades, quando na realidade, entende mais do crime do que o próprio criminoso.

As aventuras teológicas do Padre Brown alcançaram imediato sucesso, até mesmo ofuscando obras maiores, como O Napoleão de Notting Hill, O Homem que era Quinta-feira e Ortodoxia. O sucesso acontece em um momento desfavorável à um novo detetive, pois a concorrência era grande. Sem contar o mítico Sherlock Holmes, haviam detetives populares como Arsène Lupin, de Maurice Leblanc, Auguste Dupin, de Edgar Allan Poe e outros, como Monsieur Lecoq e Nicholas Carter.

Então, por que um imenso número de leitores católicos, anglicanos e até protestantes se deixaram fascinar pelas investigações policiais de um obscuro padre católico, que... 

"...tinha um rosto tão redondo e desinteressante quanto um pudim de Norfolk".

e

"...olhos tão vazios quanto o Mar do Norte" ?

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Há que registrar como críticos e estudiosos de Gilbert K.Chesterton se empenharam para responder a questão. E chegaram à óbvia conclusão de que o desajeitado sacerdote que não larga seu velho e puído guarda-chuva, é muito mais do que um detetive amador interessado em crimes. Seus contos mostram um agudo observador da alma humana, que, ao tempo em que escrutina o perfil psicológico e o modo de agir do criminoso, estuda as atitudes e o comportamento da vítima.

Em A Sabedoria do Padre Brown, o detetive de batina explica que identificar a motivação do criminoso não é somente um exercício científico, mas um exercício de Teologia. Ele age para entregar o prevaricador à justiça, mas antes de tudo, procura o confronto com o pecador, tentar o arrependimento e abrir o caminho à conversão. O método o leva a entrar dentro da mente do suspeito, onde aguarda até se sentir como inocente ou assassino. Porque, ao final, o que ele procura é desvendar as contradições do comportamento humano, como registrou em O Homem que era Quinta-feira:

"A misteriosa dimensão da liberdade humana é capaz de fechar e escurecer as claraboias da consciência por onde passa a boa luz que desce do céu".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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