É primavera!!!!
Eu estava escrevendo, com toda a minha fúria, sobre a falta de políticas públicas para velhos no Brasil quando bati numa tecla demoníaca e …
Eu estava escrevendo, com toda a minha fúria, sobre a falta de políticas públicas para velhos no Brasil quando bati numa tecla demoníaca e tudo foi pro espaço. OK. Quem mandou não salvar o texto? Então, recomeço falando na primavera, a linda estação das flores, do romance, da alegria em estar vivo. Não é melhor assim?
Mesmo que se veja uma entrevistada num noticiário de TV proferir a frase "o idoso é um ser desejante", a gente precisa falar de flores. Mesmo que existam tantos cafajestes que se promovam, em sites, blogues e outras "iniciativas", vendendo este material precioso que atende pelo nome de terceira idade, boa idade, meia idade e, mais nojento ainda, maturidade, precisamos falar no desabrochar das árvores, nas novas brotações das folhagens.
Falar em velho, afinal, é uma perda de tempo. Velho vai morrer logo. E ponto. Não vale o trabalho de se gastar tempo e dinheiro com ele. Afinal, a vida corre em torno da vitalidade, da juventude, de quadris largos bons de parir, de rapazes tesudos capazes de perpetuar a digna espécie humana. Velhice? Ora, não encham o saco com este tema.
Vamos olhar para os passarinhos que cantam, em especial os sabiás (parece que Martha Medeiros não gosta, coitadinha; o canto deles deve atrapalhar seu maravilhoso processo criativo que tem nos brindado com livros fora de série de tão bons!!!) e esquecer que existem velhos. E, principalmente, que envelhecemos.
Coisa mais nojenta dizer que velho se peida sem controle, e se mija e se caga sem querer, sem falar que suja sempre a tampa do vaso porque não alcança mais a bunda para se limpar. Vejo, querendo ou não, um dia vai ter de botar fralda geriátrica, dane-se seu orgulho. Mas a especialista entrevistada na TV diz que o velho é um ser "desejante". Que bonito isso! Parece um quadro de Monet! Ora velhos, deixem de incomodar na vida real e desejem!
Desejem ser jovens de novo, porque a velhice não perdoa - aquela autonomia, as plásticas que mascaram as rugas (e até as zonas baixas de muitas senhoras de dinheiro, que ficam quase virgens!), os cabelos pintados, as unhas feitas, as calças de jeans de grife que buscam esconder o traseiro murcho - desejem isso e mais um pouco. Ser desejante é viver, diz a moça na TV, aquela sábia, jovem e especialista moça.
Mas, atenção, velhos: isso exige grana. Quem depende de aposentadoria mixuruca, não tem filhos ou parentes interessados com finanças em dia, que precisa usar o tal do SUS, se benza, porque aí, o ser desejante já são outros quinhentos. Rezem, também, para que não consumam com seus dados cadastrais num banco, porque vão mandar vocês se virar pra provar que é quem é, mesmo que há mais de 30 anos freqüente a mesma agência.
Sobretudo, velhos do meu Brasil, orem por uma boa morte. Daquelas mortes silenciosas, sem dores, sem a tristeza de se ver arrastando os pés - quando tem ainda o privilégio de caminhar - e sem a angústia, a impaciência que brota quando nem mais reconhece um amigo ou um parente chegado.
Ah, sim! Que ingrata sou: estamos vivendo mais! Já não se morre tanto aos 45, 50, 60 anos como há poucas décadas. Claro: acharam remédios capazes de nos manter semivivos ou semimortos por mais tempo. Querer que, além disso, ainda nos dêem jovens médicos sempre gentis (claro que falo do SUS) e interessados por nossos dodóis, centros comunitários equipados com pessoas e trecos para exercitar nossos músculos cansados, que alegrem nossos dias com alguma bobagem, mesmo que seja um palhaço sem graça no meio da sala, isso já é querer demais! Até porque os que estão no poder não envelhecem, com certeza: a vaidade os faz virar "seres encantados". Então não precisa pensar neste período lamentável, feio e fedido chamado velhice: o governo, este ente amoroso, está cuidando de todos nós.
E feliz primavera a todos.