Estranho e hipócrita Brasil

Começo a escrever enquanto um cheiro de miojo com molho de frango entra pela janela do meu micro birô, ao mesmo tempo em que …

Começo a escrever enquanto um cheiro de miojo com molho de frango entra pela janela do meu micro birô, ao mesmo tempo em que disparo respostas de mails, abasteço redes sociais de meus clientes, confirmo entrevistas de escritores que estão na doce babel que é a Feira do Livro, penso se almoço ou não, que devo dar comida pros cães, que tenho de botar roupas para lavar e estender, ouço noticiário na TV ligada na sala, percorro o Google em clipagem, entro e saio mil vezes de portais de jornais, revistas, rádios, TVs e penso na matéria que li esta semana na Galileu sobre os malefícios de fazer várias coisas ao mesmo tempo. E quase rio, pra não chorar, considerando que, se eu fizer uma tarefa por vez, nem um dia com 48 horas será suficiente!
Ah, as teorias sobre o mundo ideal, o viver ideal, tudo bonitinho, ajeitadinho, sem um fio de cabelo fora do lugar. O paraíso de boa parte dos psicólogos e psiquiatras que, em vão, tentam nos enquadrar nos moldes que carregam para seus consultórios, eles que, coitados, semanalmente também precisam peregrinar para os consultórios de seus próprios psicólogos e psiquiatras para calibrar a cuca. Moto continuo!
Ando cada vez mais irritada com estas coisas do politicamente correto, da hipocrisia elevada ao cubo, todo mundo tentando ser magnânimo com os defeitos alheios daqueles que estão longe, mas que não suportam um pentelho de qualquer familiar caído no tapete do banheiro de casa. Me pasmo com a ginástica que a maior parte dos colegas destes brasis está fazendo para tentar se equilibrar no cordãozinho frágil da "postura justa" quando o assunto é o câncer de Lula. Tenho visto, ouvido e lido cada falsidade que nem todos os sacos de vômito de um jumbo serão suficientes pra armazenar todo o meu nojo.
Nas redes sociais, em especial no Face, esta festa dos mascarados é ainda mais ruidosa: gente que jamais precisou botar o mimoso pezinho em um ambulatório ou emergência do SUS se descabela para provar que é uma maldade não só a provocação do "Lula vai pro SUS" mas acima de tudo as reclamações contra o ma-ra-vi-lho-so sistema de saúde pública brasileiro.  Nunca antes na história deste país um tumor foi tão apaixonadamente discutido. Nem o do mitificado vice José de Alencar, mimadíssimo pela mídia por sua "bondosa" mineirice no trato que buscava encobrir os humanos defeitos (políticos inclusive), nem o câncer de Dilma, nem o de Gianecchini, nada veio a furo com tanta intensidade quanto o tumor do "cara".
E o que mais me chama atenção é que as críticas, os diferentes níveis de raiva, maldade, praguejamentos inclusive, contra Lula brotaram imediatos, sem qualquer tipo de articulação. Eu acompanhei a divulgação da notícia enquanto estava navegando nas redes e, segundos após, começaram a pipocar os recadinhos de "Lula vai pro SUS", e, claro, na mesma hora, o choro e o ranger de dentes das viúvas.
A fúria era justificada pelos "contras" com o argumento de se ousar brincar com uma doença como essa (que minha avó chamava de "coisa ruim", tamanho o medo medieval que, pelo jeito, ainda impera), mas, obviamente, se o doente fosse um imperialista americano tipo Bush, claro que daria pra se dizer o que quisesse. Foi o festival do dedo em riste na cara de quem, usando de "crueldade, desumanidade, insensibilidade", se atrevia a confrontar Lula com suas incoerências, como o seu discurso em que, sacanamente, diante do populacho mesmerizado, dizia que o posto de saúde era tão bom que estava louco pra se internar. Mas é lógico que o malho seria livre caso o tumor estivesse na garganta de, por exemplo, algum jornalista da Globo. 
A rotina do SUS é, pra mim, como todos os que me lêem sabem, bem conhecida. Tenho narrado aqui e onde posso escrever publicamente a saga de meu pai em sua luta contra o câncer de próstata percorrendo os caminhos da assistência pública à saúde. Minhas brigas, bem como meus eventuais elogios a esta realidade médica e hospitalar que temos, são claras e coerentes.  E as acho justas. Por isso não tenho como deixar de me manifestar sobre o circo do câncer de Lula e seus bichinhos amestrados.  Não me incomodam os autênticos partidários defensores do doente, cujo papel é mesmo prantear o paizinho doente. Me dão (e não escrevo dão-me de propósito!!!) urticária os que, de repente, viraram humanitários e magnânimos por puro oportunismo ou medo. Eca!
Estranho, este Brasil. Muito estranho.

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

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