IN FORMA

Por Marino Boeira

UM FILME, UMA DISCUSSÃO

A partir do último domingo a grande mídia e as redes sociais estão ocupadas por um único acontecimento, a escolha de Fernanda Torres no Globo de Ouro como a melhor atriz de 2024 pelo filme Ainda Estou Aqui do Walter Salles.

O tom é de um patriotismo despido de qualquer análise crítica. Nelson Rodrigues dizia sobre o futebol que "a seleção é a Pátria de chuteiras". Para os adoradores do filme e do trabalho de Fernanda Torres "eles são a Pátria em 24 fotogramas por segundo"
Como não é o nosso caso vamos encarar mais uma vez o tema, correndo o risco de receber muitas pedradas de gente que vai muito pouco ao cinema e construiu sua cultura fílmica com as novelas da Globo.

Primeiro o filme: um bom filme, com bons atores como tantos outros, mesmo brasileiros, que você encontra diariamente nas telas dos cinemas ou nos vídeos dos streaming. Bem dirigido - Walter Salles - um dos homens mais ricos do Brasil, herdeiro de família de banqueiros e exportadores de nióbio- é competente no seu metier.

O seu problema maior é pretender fazer uma análise do período ditatorial no Brasil, quando o desaparecimento de opositores políticos, com torturas e mortes eram comuns. Isso simplesmente não existe no filme. Rubens Paiva, o advogado que desaparece, é preso e morto depois pelos militares na vida real. No filme, a falta é apenas uma lembrança dolorosa para sua mulher e filhos.

Se alguém pretendia a partir do filme conhecer melhor a ditadura sairá frustrado. Silvana Moura fez a frase definitiva sobre o filme:
"Quem não conhece a ditadura não é vendo o filme que vai conhecer". Completo, dizendo que quem conhece, sabe quanto
faltou mostrar e dizer sobre o que ela foi, como fizeram os argentinos com dois filmes clássicos sobre ditaduras: História Oficial
e 1985.

Quem quiser conferir, basta procurar nos streamings os filmes História Oficial, de Luiz Puenzo, com Norma Aleandro é de 1985 e 1985, de Santiago Mitre, com Ricardo Darin é 2022. Nos dois filmes argentinos, a ditadura é o pano de fundo presente nas histórias.

No caso do filme brasileiro, a ditadura é objeto só de citações, porque pretenda ser fiel ao livro em que se baseou, Ainda estou
Aqui, de Marcelo Paiva, que conta apenas a história de sua mãe Eunice Paiva que de repente precisa cuidar de toda a família
quando o pai desaparece.

Isso é o que talvez permita ao presidente Lula saudar o reconhecimento da vitória de Fernanda Torres e ao mesmo tempo dizer como fez nos 60 anos do golpe de que não era para remoer o passado.

A outra questão que o pessoal das redes sociais pretende interditar é a discussão da premiação de Fernanda Torres. Ela está muito bem no filme, mas nada que lembre uma interpretação excepcional capaz de fazer história no cinema.

Mas ela ganhou de estrelas como Kate Winslet e Nicole Kidman, dizem. Só que Hollywood historicamente, ao lado da qualidade da interpretação leva em conta o exemplo moral que a personagem do filme mostra.

Nicole Kidman no filme em que concorreu ao Globo de Ouro, Babygirl faz o papel de uma "CEO" de uma grande empresa que é uma ninfomaníaca, apaixonada por um homem 30 anos mais jovem e que se submete ao papel de uma mulher-escrava, se arrastando literalmente aos seus pés para agradar seu amante.

Já Kate Winslet vive Lee, uma ex-modelo de moda, que vira fotógrafa e se destaca em coberturas jornalísticas na Segunda Guerra e depois nos campos de extermínio nazista na Europa. O que complica sua imagem, são suas histórias de vida: foi estuprada quando menina e contaminada com uma doença venérea; teve mais uma tarde uma foto sua usada como ilustração de anúncio de absorvente feminino; sofreu de forte depressão no final da vida e ainda foi vista como suspeita de espiã comunista na Inglaterra.

Para a grande indústria capitalista que comanda o cinema americano, o exemplo da brasileira Fernanda Torres é muito mais palatável do que os de Nicole Kidman e Kate Winslet.

O resto é coisa de torcedores pouco racionais.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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