Istanbul

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"Para apreciar Istanbul, suas ruelas, as vinhas e os cedros

que enfeitam as ruínas otomanas com tanta graça,

é preciso, antes de mais nada, ser um estranho". 

             Orhan Pamuk. 

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Certa vez, um jornalista ocidental perguntou a Orhan Pamuk, o escritor turco ganhador do Nobel de Literatura, o que significava para ele ser um escritor. A resposta que ouviu foi digna de um Marcel Proust ou de um Victor Hugo:

"Um escritor é alguém que gasta anos, pacientemente,

tentando descobrir o segundo ser dentro dele,

e o mundo que faz que ele seja o que é.

Quando eu falo de escrever, a primeira coisa que me vem à cabeça

não é uma novela, um poema, ou tradição literária,

é uma pessoa que se fechou a si própria num quarto,

sentou-se a uma mesa, e, sozinha, volta-se para dentro;

por entre as suas sombras, ele constrói um novo mundo com palavras".

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Animado, o entrevistador indagou quais eram suas fontes de inspiração.  A antológica resposta de Orhan Pamuk causou surpresa aos jornalistas:

"Minha inspiração vem das noites em que o sol se põe cedo, quando os pais de família sob os postes nas ruelas, voltam para casa carregando sacos plásticos. Das velhas balsas de Bósforo atracadas em cais desertos, onde marinheiros sonolentos esfregam os decks, balde na mão e um olho na tela de uma televisão preto-e-branco.

Falo dos velhos livreiros que se arrastam de uma crise para a próxima, esperando o dia todo que apareça um cliente; dos barbeiros que reclamam que os homens não mais se barbeam como antes; das crianças que jogam bola entre os carros em ruas de paralelepípedos. Falo das mulheres cobertas por véus, que não falam com ninguém, enquanto esperam pelo ônibus que nunca chega; dos abrigos de barco vazios nas antigas vilas de Bósforo; das casas de chá ocupadas por homens tristes e desempregados.

Minha inspiração vem das praças de Istanbul nas noites de verão, onde vagueia o último turista bêbado; das gangorras quebradas em parques vazios; dos chifres de navio crescendo na neblina que vem dos lados da Ponte Gálata. E dos edifícios de madeira cujas placas rangiam quando eram mansões de pashas e que se tornaram sedes municipais; das mulheres espiando através das cortinas, enquanto esperam por maridos que não conseguem voltar para casa à noite. Eu falo dos velhos nos pátios das mesquitas, vendendo tratados religiosos, contas de oração e óleos de peregrinação.

Falo das milhares de entradas idênticas dos edifícios de apartamentos, com fachadas descoloridas por sujeira, ferrugem e poeira; dos muros    da cidade velha, as mesmas ruínas desde o fim do Império Bizantino; das gaivotas empoleiradas em barcaças enferrujadas; do pequeno fio de fumaça subindo da chaminé de uma mansão que faz cem anos nodia mais frio do ano. Falo das sombrias salas de leitura das bibliotecas; dos cheiros de respiração que vem dos cinemas, que antes brilhavam  com seus tetos dourados, agora cinemas pornográficos frequentados por homens envergonhados"

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E quase sem tomar fôlego, Orhan Pamuk continua sua interminável lista do que o motiva:

"Minha inspiração vem das mulheres sozinhas após o pôr do sol, quando o vento está vindo do sul; das mensagens sagradas escritas em luzes entre os minaretes das mesquitas; das paredes cobertas por cartazes desgastados e enegrecidos; dos velhos e cansados fords e chevrolets que seriam peças de museu em qualquer cidade ocidental, mas que aqui servem como táxis compartilhados. Das mesquitas cujas placas de chumbo e calhas de chuva são sempre roubadas; dos cemitérios e seus ciprestes que parecem portais do tempo.

Das luzes amareladas que se vê à noite nos barcos que vão e vem de Kad?köy para Karaköy; das crianças nas ruas que tentam vender os mesmos tecidos para cada transeunte; das torres de relógio que ninguém consulta; dos livros de história onde as crianças estudam as antigas vitórias do Império Otomano, para não serem castigadas em casa. E dos dias em que um toque de recolher repentino obriga que todos fiquem em casa porque os oficiais estão em busca de terroristas".

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O autor de "Meu nome é Red" e "Neve" encerra, afirmando sua paixão pela palavra escrita:

"A literatura é o eixo condutor dos sentimentos, demonstrando o papel  do escritor. Ainda estou tentando encontrar uma chave que explique o fascínio que a literatura exerce na vida do ser humano. Meus livros querem ser uma reflexão sobre a importância da leitura como eixo para   a descoberta do verdadeiro significado da existência. Tento provar que é preciso amar a vida em toda a sua beleza. E creio que a leitura dos romances permite às pessoas pensarem de forma mais profunda sobre quem realmente são".

E usa uma frase de seu livro "A Maleta de meu Pai":

"Para ser feliz, eu preciso de minha dose diária de literatura.

E nisso não sou diferente do doente que precisa uma

colher de remédio por dia".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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