Nunca foi só uma estatueta
Por Fernando Puhlmann
"Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada nesse meu penar"
Chico Buarque
O País acordou essa semana em estado de graça com a premiação da Fernanda Torres. Nossa estrela tupiniquim rompeu a bolha e trouxe para casa uma das estatuetas mais importantes do cinema mundial. A extrema direita desfez do prêmio, desfez da atriz e desfez da conquista, nada diferente do que já imaginávamos que aconteceria, afinal, a extrema direita não tem noção do que é cultura, arte, cinema. Para eles, é fútil, frívolo, dispensável. Mas nós, seres comuns que habitamos o estado de amor, vibramos.
Porém, o meu texto de hoje não é sobre Fernanda Torres e nem sua premiação histórica, acredito que tudo sobre isso já foi dito, de forma talvez muito melhor do que eu tenha capacidade de dizer. Meu texto é sobre o que isso representa, de verdade, na história política do Brasil.
Vivemos 20 anos de ditadura militar, fomos esmagados, pisoteados, calados por coturnos sujos e fardas sebentas. Nossos pais, irmãos, amigos e filhos foram arrancados de nossas casas, jogados em porões fétidos, interrogados, espancados e torturados, muitos até a morte, sem nem ao menos saberem ao certo porquê estavam lá.
Muito se conta dos horrores vividos nesses infernos patrocinados pelo estado, mas pouco se fala da resiliência (em grande parte feminina) dos que foram torturados nas suas casas, em silêncio, sem saber o paradeiro de seus amados.
Pessoas comuns, que nem eu e tu que me lê agora, cidadãos simples, que foram obrigados a tocar a vida em frente enquanto purgavam pelas barbáries que seus entes sofriam na mão de bandidos sanguinários com autorização oficial para machucar e matar pessoas.
Mães que precisavam continuar trabalhando para que seus filhos pudessem comer, filhas que continuavam cuidando de seus pais acamados, enquanto seus rebentos eram estuprados em algum quartel. Irmãs, irmãos, companheiros e companheiras que não podiam se dar ao luxo de chorar e se revoltar, pois nem isso lhes era permitido em um país dominado pela força bruta.
Essas pessoas, esses esquecidos da história, foram representados pela estatueta na mão da Fernanda. Esses oprimidos, calados, humilhados também foram os vencedores na madrugada de domingo para segunda. Esses seres tantas vezes invisíveis, foram alçados aos olhos do mundo, gritaram a plenos pulmões em cada palavra dita por nossa estrela, e o recado foi claríssimo: aqui nunca mais suportaremos quietos desmandos de seres inferiores, de pessoas abjetas, de ignorantes e imbecis.
O Brasil não trouxe uma estatueta para casa, o Brasil levou a Fernanda, a Eunice Paiva e todos nós, que passamos anos sofrendo calados os desmandos desse bando de assassinos, para o mundo. E agora, meu camarada, o mundo pode entender um pouquinho qual é a verdadeira força do nosso povo.
Marias, Joanas, Fernandas, Eunices, Iaras e tantas outras mulheres puderam finalmente chorar a dor da perda de cabeça erguida, puderam olhar para trás e se sentirem representadas.
'Ainda Estou Aqui' não é apenas um filme, o Globo de Ouro de Melhor Atriz Dramática não é apenas uma premiação. É um símbolo, um marco, uma vitória indelével da história sobre um fascismo pútrido e que não permitiremos nunca mais ser alçado a nada em nosso País.
Chorem, gritem, esperneiem, não haverá anistia dessa vez. E não me falem em revanchismo, nós só queremos justiça e vocês serão responsabilizados, pois esse País tem dono e ele se chama Cidadão Brasileiro.