O que faz a ociosidade!

Por Flávio Dutra

De vez em quando é conveniente tratar de temas menos áridos. Por isso, me permito divagar hoje sobre paralelepípedos. Sim, paralelepípedos. A primeira lembrança que tenho desse objeto é do animado carnaval da  rua Carazinho, no bairro Petrópolis. A Carazinho começa na Protásio Alves e hoje se vai até a Nilópolis.  Mas aqueles anos 1960 o Carnaval ocorria  apenas na primeira quadra e era promovido pelo casal que tinha um posto dos Correios, em frente ao qual, no outro lado da rua, ficava o coreto de madeira, modestamente ornamentado, de onde saia a animação, microfone em punho, do homem do casal.

- Agora está chegando a tribula (...) descendo a avenida, maltratando os paralelepípedos. 

Eu tinha 9 ou 10 anos e ficava encantado com  aquela movimentação, sem entender., porém, como o animador não conseguia pronunciar tribo - as tribos tinham presença forte no carnaval de então - mas paralelepípedo saia sem erro, sílaba a sílaba, mesmo que maltratado pelos passistas fantasiados de povos originários. "Descendo a avenida" até se justificava porque aquele trecho da Carazinho, a partir das Protásio Alves, tem um declive bem acentuado. Entretanto, até hoje não entendo por que acusava as "tribulas" de maltratarem os paralelepípedos. Talvez quisesse dar conta da animação dos carnavalescos, cheios de penas e cocares. 

Poucos anos mais tarde, nas aulas de geometria, me reencontrei com os paralelepípedos, agora como um prisma, com seis faces, sendo que duas são idênticas e paralelas entre si, conforme a descrição dos livros. Só então é que me dei conta de porque as pedras de calçamento são conhecidas, dado a seu formato, de paralelepípedos. Hoje, nas principais ruas e avenidas nem podem mais ser maltratados por passistas animados, eis que a maioria está coberta por asfalto. 

Aí vem o questionamento: a troco de quê o responsável por este valorizado espaço resolve escrever sobre os prosaicos paralelepípedos? Ocorre que tempos atrás me desafiei a imitar Chico Buarque, na antológica Vai Passar, e dar relevância ao paralelepípedo:

Vai passar
Nessa avenida um samba
popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram
sambas imortais.

Claro que nem de longe tenho um mínimo do talento do genial compositor, mas superei o desafio, mesmo maltratando o vernáculo, como as "tribulas" maltrataram os paralelepípedos no Carnaval da rua Carazinho. Vale reprisar  que o mote para esta crônica não tem qualquer importância e surpreendo-me ao constatar que o assunto rendeu pelo menos cinco parágrafos.  O que faz a ociosidade!

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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