O salvador do futuro

Por Vieira da Cunha

Limpo, silencioso, moderno, repleto de tecnologias inovadoras, aí está nas ruas o carro elétrico, o salvador do meio ambiente. É verdade que custa a metade de um apartamento de dois dormitórios, mas o que importa, se com ele estaremos ajudando a salvar o planeta e os ouvidos da população, haja vista que não faz ruído? E cá entre nós, quem se queixa do valor do elétrico tem mais é que se contentar com um popular, não é não?

O uso da tecnologia moderna exige atitudes que devem ser exercidas com atenção e cuidado. Vejamos quais.

O fato de o carro elétrico não fazer ruído implica na constante ameaça de atropelar o pedestre desatento. Ninguém manda o dito cujo atravessar a avenida sem olhar para os lados e ainda fora da faixa de segurança, mas a lei está aí e atropelar pedestre dá uma senhora dor de cabeça. Em você, não no atropelado, que poderá ter dores mais intensas, mas aí isso será problema dele.

É também verdadeiro que os espíritos de porco que assolam o país estão remando contra as inovações trazidas pelo veículo elétrico. Inventam histórias sobre a mineração predatória de recursos como o lítio, o cobalto e o níquel, estes elementos indispensáveis para a bateria que vai mover a novidade. Ou que a eletricidade que vai alimentar o bólido seja proveniente de uma usina movida a carvão, mantendo a degradação de ecossistemas com a emissão de gases poluentes.

Queriam o quê? O milagre de o carro se movimentar sem a necessidade de motor? O que vemos aí é o velho conservadorismo humano vencendo a razão. Estes do contra agem como o imperador alemão Kaiser Wilhelm, que sustentou, no final do século 19, a ideia de que motor a combustão era uma solene bobagem, pois não substituiria o cavalo. Errou por muito, já que não há motor a combustão que não seja movido por cavalos - cavalos de potência, bem entendido.

Desdenhe dos comentários indicando que os carros elétricos só vão contribuir para ampliar os engarrafamentos no trânsito das grandes cidades. São expressões de mentes tacanhas, incapazes de identificar o aspecto positivo: é um engarrafamento sustentável, sem aquela fumaça nojenta com que as carroças movidas por motor a combustão empestam o ar. 

Os despeitados apontam como problema não haver estações de recarga suficientes, e que por isso o ato de abastecer pode levar até seis horas. Não existe dificuldade nenhuma aí, acredite, pois o período pode ser bem menor, de duas horas apenas. E durante este tempo o motorista pode passear pelo shopping, se divertir fazendo palavras cruzadas, colocar em dia as conversas pendentes no WhatsApp... Só um medíocre não sabe o que fazer numa hora dessas.

É normal, já que se trata de novidade, que o dispositivo para instalar um carregamento elétrico em casa custe caro, assim como a manutenção, porque não há muita oferta de mão de obra especializada. Mas quem compra um carrinho destes não deve se importar com detalhes tão mesquinhos, certo? Nem com o valor das peças de reposição, mesmo que estas levem semana ou mais para chegar à concessionária. Nesta situação, você usará um carro reserva movido a combustível fóssil, mas fique tranquilo, é por pouco tempo para logo voltar à sua consciência limpa. 

É isso aí, prezada leitora, prezado leitor, o futuro chegou e está agora plugado na tomada, pronto para levar o condutor do veículo elétrico até a padaria com a certeza de estar contribuindo para despoluir a Terra. É um futuro sustentável e moderno. Inevitavelmente engarrafado, mas fazer o quê? Tudo tem seu ônus. O que é mais uma ironia...

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas passagens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem cinco netos. E-mail para contato: [email protected]

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