Obrigado, Colmar!

Por Fernando Puhlmann

"Eu canto e brota do peito, o livre canto do pago"

Colmar Duarte

Quando eu tinha 8 anos, em 1981, caiu na minha mão o LP de um festival nativista, o primeiro que eu me lembro. Nele, havia uma música, que abria o disco, e que a minha avó dizia ser a descrição do meu avô, Veterano, cantada pelo Leopoldo Rassier. Ali, naquele momento, um novo mundo se descortinou para mim, um mundo cheio de palavras estranhas, com ritmos que eu ia reconhecendo aos poucos e com temas que transformaram a minha visão de mundo. Sem saber, naquele instante do tempo, começava a se construir o Fernando que sou hoje.

Mas para que vocês entendam o que eu digo, preciso contar um pouco da história deste festival que comemorou 53 anos, da sua primeira edição, no mês passado, e que nasceu de uma rusga. Um jovem chamado Colmar Duarte teve uma composição sua impedida de participar de um festival de MPB em Uruguaiana, pois ela falava das coisas do campo com linguagem nativista e o júri técnico não a considerou popular. Não aceitando essa injustiça, ele resolveu criar um evento onde a cultura gaúcha/nativista fosse realmente a protagonista. Assim nasceu o mais importante Festival do Sul do Brasil e um dos mais conceituados da América Latina: a Califórnia da Canção Nativa.

Mas a Califórnia não se limitou a falar apenas das coisas do campo, e talvez aí esteja a magia do que aconteceu nos próximos anos. No início, não existiam festivais assim como referência, tudo era novo, não havia nem a certeza de que se teria músicos interessados em participar, mas o criador atravessou o Estado e veio bater em Porto Alegre, em um apartamento na Cidade Baixa para ser mais específico.

Neste apartamento de seu primo, encontrou poetas e músicos urbanos, alguns com raízes no interior, outros não, mas que sonhavam com um palco para expressar a sua voz. Dessa comunhão da sede urbana por voz e liberdade, e da linguagem campeira, nascida em um pampa sem fronteiras, surgiu um festival que catapultou a arte a níveis nunca vistos neste Estado, ao ponto de ser criado um "tipo" de música, muito usado em rodas de artistas durante anos: " Essa música é música de Califórnia".

Na Capital, Colmar também buscou o mais importante incentivador da cultura gaúcha, Paixão Cortes, que na época tinha um programa na Rádio Guaíba. Entre um mate e outro, Paixão Cortes se apaixonou pela ideia. E pelas potentes ondas da rádio que trabalhava, convocou artistas e poetas do Estado todo para se apresentarem na primeira edição do festival que nascia.

A partir daí a história se fez, a teimosia de um guri de Uruguaiana, que não aceitou ser barrado em uma seleção, pois entendia que arte não tem cerceamentos, mudou o curso da música gaúcha e a vida de milhares de artistas.

Mas lá em cima eu falei que a Califórnia me "formou" como ser humano e isso não é exagero.

Nos discos da Califórnia e de todos os festivais que a partir dali nasceram, fala-se em mais de cinquenta, eu bebi de poesia, cultura e humanidade.

Nos versos de Pássaro Perdido, Descaminhos e Desgarrados, eu aprendi que nem sempre a ânsia por ter mais é melhor do que a vida simples e alegre ao lado dos teus.

Nas melodias de Romance da Tafona e Esteio e Sonho, a poesia me mostrou que o amor na sua plenitude é baseado em cumplicidade, respeito e paixão.

Na potente voz do mestre Cesar Passarinho, cantando Guri, aprendi que a ancestralidade é fator preponderante para a referência adulta de uma criança, que só quer ser reconhecida como alguém que "saiu igualzito ao Pai", e que os negros têm todos os direitos na querência, "afinal o amor não tem cor", como o maior de todos cantou em O Negro de 35.

Nas fortes e visionárias estrofes de Rumos Perdidos, Lições da Terra e Penas, eu tive os primeiros contatos com a importância de cuidarmos a terra, dos rios e dos animais, que são a base da nossa sobrevivência.

E assim eu poderia listar dezenas, centenas, milhares de músicas, versos e vozes que me ensinaram a ser um homem.

Mas não foi só isso, foi mais, muito mais que isso, porque quem se cria ouvindo poesias como a do Grito dos Livres e Semeadura, aprende que a alma não pode ser aprisionada, que a voz não pode ser calada e que a mente ganha asas cada vez que te dizem não, afinal, a nossa liberdade não tem preço e nem pode ser comprada.

Obrigado, Colmar, muito obrigado por não ter deixado um não te calar, a arte do RS mudou porque tu não aceitastes ser prisioneiro de um conceito. Mudou porque tu honraste os versos mais lindos de todos os Festivais:

"Enquanto o gaúcho for visto no pampa
Enquanto essa raça teimar em viver
O grito dos livres ecoará nesses montes
Buscando horizontes libertos na paz".

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