Os Gustav

Por José Antônio Moraes de Oliveira

 

"Aqueles que contemplam a beleza

estão condenados a seduzí-la ou morrer".

Luchino Visconti.

Ele conhecia os riscos de assumir os desafios de verter Thomas Mann para o cinema. Mas Luchino Visconti não se intimida, submergindo no denso e complexo universo de "Morte em Veneza". E desde as primeiras cenas, constrói a jornada de angústia de Gustav von Aschenbach. Em uma gôndola no Grand Canal, a caminho  do Lido, ele foge de um recente fracasso como músico. Ele vai tentar se refazer e voltar a compor. Mas nem mesmo consegue se comunicar com seu gondoleiro, que se nega a fazer uma escala na Piazza San Marco. E ao dizer que não vai pagar a viagem, ouve:

"- Tu pagherai" ("O senhor vai pagar").

Quando chegam ao Lido, o estranho personagem desaparece como por encanto, antes de receber seu pagamento. O episódio aparece no livro, mas o filme aprofunda os significados: mostra o gondoleiro como um homem ruivo, réplica do clown que saúda Aschenbach na chegada ao terminal, fazendo algumas misteriosas advertências.  

Luchino Visconti leva adiante a analogia - o gondoleiro se assemelha a Caronte da mitologia grega, o barqueiro que conduzia os condenados ao Inferno. A passagem pelo Grand Canal não é luminosa nem prazerosa, mas sombria e angustiante como o Estiges, o rio que dividia o mundo dos vivos do mundo dos mortos. E passamos a acompanhar Aschenbach em sua saga transformadora, assumindo o papel de alter-ego do escritor, como narrador e crítico dos figurantes hospedados no Hotel des Bains.

Aí temos o dedo de Luchino Visconti, um marxista que pertence à alta nobreza. Ele usa o cenário do palaciano Hotel des Bains para desfilar - com sua habitual elegância - um painel da decadente burguesia e nobreza européia dos anos 1900. Um grande escritor sabe transformar as meras obviedades cotidianas em impulsionadoras de arrebatamentos e emoções. Como demonstra Thomas Mann em A morte em Veneza. E coube a outro grande verter um clássico da literatura do século XX em um memorável marco do cinema europeu.

***

Como de hábito, antes de filmar, Luchino Visconti se dedica a escrutinar significados e analogias do roteiro e seus personagens. Desvendou as muitas referências e simbolismos contidos em A morte em Veneza. Concluiu que Thomas Mann esboçara Gustav von Aschenbach baseado na filosofia de Friedrich Nietzsche e Arthur Schopenhauer. E soube que o escritor estava sob forte impressão do encontro que tivera com Gustav Mahler, de regresso de um verão em Veneza. Não por acaso, von Aschenbach recebe o mesmo prenome do músico austríaco. E - por influência ou coincidência - Luchino Visconti escolhe a 5a.Sinfonia de Gustav Mahler para sublinhar o clima de tragédia e morte.

E seguindo a mesma linha de coerência, o ator inglês Dirk Bogarde, ao compor von Aschenbach pesquisa fotos e posturas do músico austríaco. Em sua biografia An Orderly Man, o ator diz que estudou o papel, ouvindo o Adagietto da 5a. Sinfonia, que entendia como um "remanso de paz e um refúgio" das atribulações e angústias do cotidiano.

O livro de Thomas Mann é carregado de alusões intertextuais e de vestígios autobiográficos. Gustav von Aschenbach sofre um bloqueio criativo, o mesmo bloqueio que aconteceu com Mann, que viaja para Veneza, deixando inacabado o manuscrito do romance "Krull".

No Lido, ele se hospeda no recém inaugurado Hotel des Bains, consagrado ponto de encontro da aristocracia européia. O protagonista de A morte em Veneza é um fruto de suas vivências pessoais, como a admiração por Gustav Flaubert e a ligação com Sergei Diaghilev, que sonhava em coreografar A morte em Veneza. Detalhe: o bailarino passava temporadas no Lido, no Hotel des Bains.

 ***

Em sua derradeira viagem a Veneza, Sergei Diaghilev se encanta por um belo e entediado jovem polonês (mais uma coincidência?). Pouco depois, e antes de morrer, em 1929, pede para ser sepultado em San Michele, uma ilha próxima ao Lido.

***

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

Comentários