Quando o CEP infere na ação policial

Por Renato Dornelles

Provocaram grande repercussão, e não poderia ser diferente, as imagens de um atendimento de uma ocorrência por parte da Brigada Militar, em Porto Alegre, no final de semana. Um homem negro, prestador de serviços como motoboy, após ser agredido com uma faca, que atingiu o seu pescoço, acabou preso e autuado por desacato, antes mesmo que seu agressor, um homem branco morador de um bairro de classe média alta, fosse detido, apesar de ele ter permanecido no local.

Os vídeos e as fotos que circulam pelas redes sociais e que foram exibidos pelos veículos de imprensa mostram o agressor bem tranquilo. Em um momento, parece até sorrir, enquanto conversa com uma policial militar. Aparentemente, age com uma grande sensação de impunidade, tanto que permanece no local, mesmo com a Brigada Militar tendo sido acionada e chegado ao local.

Enquanto isso, o agredido é pressionado inicialmente por um PM, depois por dois, posteriormente por mais, chegando a ser colocado na parede. O agressor interfere na conversa da vítima com os policiais, sem qualquer interferência ou intervenção dos PMs. 

O agressor, ainda sem ser interpelado, assiste à prisão do motoboy por um suposto desacato. Só depois de a vítima ter sido algemada e colocada na parte traseira da viatura, é que o agressor passa a ser alvo da ação policial. As informações são de que PMs o acompanharam até seu apartamento, onde ele colocou uma camisa e se entregou. Neste momento, já havia se desfeito da faca, deixada em seu apartamento. 

O agressor então foi algemado e levado no banco traseiro da viatura. Ou seja: pelo menos aparentemente, o suposto desacato foi considerado pelos PMs mais grave e urgente do que a agressão - uma pontada de faca no pescoço.

Não nos iludamos com o fato de dois PMs que estavam na guarnição da ocorrência terem sido afastados das ruas pela Brigada Militar. O próprio secretário da Segurança Pública, Sandro Caron, deixou claro que eles foram afastados temporariamente do trabalho em razão do "estresse" causado aos PMs e por "precaução". Ou seja, foi aberta uma sindicância para apurar os fatos, mas, até aqui, os PMs estão sendo tratados como vítimas.

A propósito: policiais militares envolvidos em graves ocorrências que resultam em tiroteios com poderosas quadrilhas e às vezes testemunham morte de colegas também recebem esse tipo de tratamento antiestresse? Se não recebem, deveriam, não?

Claro que não se pode fazer julgamento antecipado, com a condenação ou absolvição dos policiais envolvidos pela forma como agiram. Mas eu sinceramente esperava um reconhecimento de que equívocos foram cometidos e que, pelo menos uma reciclagem na forma de atuação fosse anunciada. 

O excelente e experiente repórter e colunista de Zero Hora Humberto Trezzi, em uma coluna, listou erros cometidos pelos policiais, a começar pelo tratamento diferenciado dispensado aos dois envolvidos no caso, sendo muito mais rigorosos com o motoboy. 

Esse caso me fez lembrar uma fala de um tenente-coronel da Polícia Militar paulista, quando assumiu o comando da famosa Rota, as Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (corporação protagonista no livro-reportagem Rota 66: a História da Polícia que Mata, do mestre Caco Barcellos). Disse ele na época que os PMs que atuam na região nobre e na periferia de São Paulo adotam formas diferentes de abordar e falar com moradores.

"É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins [região nobre de São Paulo], ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado", 

"Da mesma forma, se eu coloco um [policial] da periferia para lidar, falar com a mesma forma, com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando".

Ou seja, de acordo com a fala do oficial, o morador da periferia deve respeito ao policial que, por sua vez, deve respeito ao morador do bairro nobre, sem que a contrapartida seja obrigatória.   

Autor
Jornalista, escritor, roteirista, produtor, sócio-diretor da editora/produtora Falange Produções, é formado em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) (1986), com especialização em Cinema e Linguagem Audiovisual pela Universidade Estácio de Sá (2021). No Jornalismo, durante 33 anos atuou como repórter, editor e colunista, tendo recebido cerca de 40 prêmios. No Audiovisual, nos últimos 10 anos atuou em funções de codireção, roteiro e produção. Codirigiu e roteirizou os premiados documentários em longa-metragem 'Central - O Poder das Facções no Maior Presídio do Brasil' e 'Olha Pra Elas', e as séries de TV documentais 'Retratos do Cárcere' e 'Violadas e Segregadas'. Na Literatura, é autor dos livros 'Falange Gaúcha', 'A Cor da Esperança' e, em parceria com Tatiana Sager, 'Paz nas Prisões, Guerra nas Ruas'. E-mail para contato: [email protected]

Comentários