Reimagine

Por Fraga

Imagine (nem precisa ser aquele idealizado mundo lennoniano) se os poderosos do cartel farmacêutico internacional fossem contaminados por um insight altruísta e
topassem a quebra da patente das vacinas: cada país poderia produzir overdoses pra sua população.

Imagine que o Bozonaro tenha um surto altruístico, incurável, e renuncie e de olhos revirados de alegria e espumando sem perigo a ninguém proponha eleições já e aí, humanizado como nunca foi, ainda cante Lula Lá numa live à nação.

Imagine se os bancos, tomados por um inimaginável altruísmo e remorso institucional resolvessem, num vapt-vupt, pagar imposto de renda como qualquer empresa. Aproveite e imagine jornais, emissoras de rádio e tv e outras empresas de comunicação pagando - por vergonha na cara ou obrigados pela justiça - os bilhões que devem à Previdência. E já que o assunto é dívida social, imagine a igreja universal deixando, por vontade própria ou por decreto-lei, de ser isenta de impostos.

Imagine se todo ano, pelo planeta afora, surgissem novas Madres Terezas, cada uma dotada de inesgotável e inexplicável altruísmo, a espalhar conforto e bem-estar a gente sem eira nem beira nem amparo de um mínimo do serviço social. Ou pelo menos outras Irmãs Dulce.

Imagine se além da filantropia e da benemerência praticadas por abnegados e pessoas de boa vontade, aquela turma intocável das grandes fortunas se submetesse à taxação do patrimônio num altruísmo sem precedentes. Calcule a elevação da caridade. E se o Banco do Vaticano também aderisse, aí se elevaria aos céus, amém.

Imagine se, altruisticamente e em defesa da tal pátria amada, as forças armadas se mostrassem menos ocupadas com a democracia e mais contra a existência de milícias, e a polícia e a PM não admitissem o poder paralelo dos traficantes. Ai que vida boa, olará.

Imagine se, de repente, em pleno monopólio da Nestlé e da condenação moralista à amamentação em público, se desenvolvessem matronas renascentistas de seios fartos como um inesperado rebanho de vacas leiteiras de róseos úberes, a produzir e oferecer generosamente o híbrido leite da bondade humana.

Imagine que os aglomerígenas, caindo em si numa queda altruísta, conseguissem entender que ajuntamento é um ato assassino e usassem máscara e se afastassem vários metros uns dos outros ou que, surpreendentemente, ficassem em casa e recusassem convites pra festas e baladas. Sim, cairiam de muito alto.

Imagine a chegada de um vírus do amor ao próximo, de uma cepa mais contagiante e propagada do que aquela que Cristo propagou.

Imagine ouvir uma nova versão do admirável Jorge Ben Jor, Os Altruístas Estão Chegando.

Sei, sei: este texto é um desperdício de imaginação.

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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