Sem perder a ternura jamais

Eu era uma garota, como milhares, que amava os Beatles e os Rolling Stones e gostava de girar o mundo sempre a cantar as …

Eu era uma garota, como milhares, que amava os Beatles e os Rolling Stones e gostava de girar o mundo sempre a cantar as coisas lindas da América. Mas, já na metade da década de 70, a garota, então adolescente, passou a gostar mais de cantar todas as coisas da América, não somente as bonitas, inclusive, com grande interesse e detalhes, os fatos obscuros do continente. Mais ou menos nesta época, uns amigos meus de Porto Alegre que tinham uma banda insistiam numa música com um refrão assim: "Nós não somos heróis da Guerra do Paraguai, nem perdemos o sono nas noites de luta em Sierra Maestra".


No meu quarto, em lugar de destaque, a imagem visual que ficou guardada na memória de todos que viveram ou nutriram algum sentimento de esquerdismo nos anos 60, 70, 80 ou 90. Pendurado perto da parede da cama, o famoso pôster de Ernesto Guevara de La Serna, com sua boina e a estrela de enfeite para valorizar a frase: "hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás". Sempre entendi que o sentido da mensagem era de que o ato mais doloroso e mais penoso, às vezes, é necessário. No entanto, se ocorrer qualquer desprendimento de afeto ou de ternura, ele pode transformar-se subliminarmente de forte em frágil.


Ernesto Guevara de la Serna, uma das figuras mais fascinantes da América Latina e de toda a história da esquerda mundial, que nasceu na Argentina, em 14 de junho de 1928, sob o signo inquieto, instável e inconformado dos geminianos, é autor das mais belas frases sobre as revoluções. O combatente, pensador, escritor, médico, ministro da Economia em Cuba, onde foi o braço direito (ops, esquerdo) de Fidel Castro na revolução, estrategista, militar e herói, morto prematuramente há 40 anos, ainda hoje é lembrado, idolatrado, respeitado e seu famoso pôster ainda emoldura quartos de adolescentes.


Falar em Che Guevara é discorrer sobre a paixão na sua forma de expressão pouco recíproca, pelo menos, à primeira vista. Porquê, ao encarnar como ninguém até hoje o espírito de um revolucionário, Che abdicou de qualquer espécie de vida que não fosse a luta pelas liberdades dos povos da América e dizia: "o verdadeiro revolucionário é feito de grandes sentimentos de amor". Ao abandonar a curta carreira profissional de médico, escolhida depois de enfrentar a doença do avô e de conviver, desde pequeno, com uma asma violenta, ele escreveu aos pais:  "Muitos me chamarão de aventureiro e isso eu sou. Mas de um tipo diferente. Sou dos que entregam a pele para provar suas verdades".


Como médico nos diversos campos de batalha onde sempre deixou sua coragem e simpatia, ele queria erradicar, para sempre, a doença da miséria, da humilhação e da dependência do corpo enfermo da América Latina. Não conseguiu.  Uma rajada de fuzil automático e depois um tiro de misericórdia disparado por uma pistola à queima-roupa sepultaram, em 9 de outubro de 1967, no povoado de  La Higueira, na Bolívia, os sonhos de Che, aos 39 anos. Tombava heroicamente o argentino, que esteve na frente de movimentos revolucionários da Guatemala, México, Cuba e Bolívia, porque considerava que a única forma de libertar a América dos ditadores era derrubá-los.


Ironicamente, este homem guerrilheiro e revolucionário foi convocado, logo após receber o diploma de médico, e dispensado do serviço militar, obrigatório na Argentina. Os instrutores consideraram incapaz para as exigências do serviço militar aquele se que tornaria um dos maiores combatentes da América Latina. O poeta cubano Roberto Fernández Retamar, convidado a definir Ernesto Guevara de la Serna disse: "Che é um homem superior, que é nosso orgulho e nossa vergonha, porque nos lembra, a todos instante, o que pode ser um homem e o que somos os homens".


A imagem de quem conciliava a disciplina e a dureza, a generosidade e a ternura, características presentes em Che, permanece na memória daqueles que o conheceram, que o estudaram ou que simplesmente leram alguma de suas inúmeras frases sobre a vida, revolução, dedicação. Se alguém, por exemplo, desejava saber se tinha um parentesco com Ernesto Guevara, ele respondia: "Se você for capaz de tremer de indignação cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros, o que é mais importante". Che, é preciso endurecer muito, porque cada dia existem menos companheiros no mundo.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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