Streaming, seu safado

Por Fraga

Após um ano e meio de vida em concubinato, confesso: tô traindo a minha sala de cinema favorita, uma lá no Bourbon Country. 

É uma vida adúltera ao contrário: nem saio de casa para trair. Apenas me largo diante da tela do computador e me entrego. Primeiro, ao voyeurismo cinéfilo, que é olhar os catálogos dos streamings. É como se fosse um estripetize numa daquelas cabines onde a Natasha Kinski se exibia em Paris, Texas. Escolho um streaming e ele pouco a pouco vai revelando o que tem a oferecer. 

Quando canso de ver tantos cartazes já vistos, pulo pra outro streaming, e as espiadelas se repetem. E assim, várias vezes na semana, tento garimpar algo que valha a noite na Netflix ou no Prime ou no Mubi ou na HBO Max ou num piratão (7.742 títulos!) com quase tudo que esses quatro têm. 

E quando suponho que achei, aí dou início às preliminares: ler a sinopse, conferir a ficha técnica, talvez assistir ao trailer. É nessa hora que me vem à lembrança os prazeres que a telona me dava e que essa telinha jamais me fará gozar. Pra não perder o embalo, desvio o pensamento e sigo o ritual. Até que me decido e vou ver algo inédito ou uma reprise das que sei que me fará vibrar. 

Ir ao cinema sempre foi uma aventura: sair duma caverna menor e entrar numa caverna maior, mais escura, e cheia de sombras que animarão a imaginação. No cinema, a suspensão da descrença é facilitada uma barbaridade: a ambiência espaçosa, a experiência ampliada aos olhos e ouvidos, a imersão na penumbra, tudo isso te entorpece a ponto liquidar qualquer resistência à fantasia. E sair da realidade por um ingresso tem sido meu vício há décadas. 

Nos streamings, em casa, jamais há suspensão da descrença. A estante, o vaso com planta, a xícara de chá na mesinha, o gato no colo (não é o meu caso), o som da descarga do vizinho, a buzina lá fora, o telefone fixo que chama, algum parente que pergunta se aquela conta já foi paga... Cada casa com seu rol de impeditivos para o mergulho profundo num filme, numa mini série (séries não são minha praia). 

Os streamings também não colaboram: cada um tem seu modo próprio de desanimar o cinéfilo: catálogos baseados no gosto mediano, nos lançamentos previsíveis, nos gêneros mais apelativos, no acervo posterior aos anos 80. E os streamings são especialistas em atrapalhar seu planos de um programa razoável: seus sistemas de buscas não são razoáveis. Todos têm um funcionário com o cacoete de trazer mais do mesmo. O algoritmo é tipo um lanterninha de antigamente que, acostumado com você, já iluminava seu caminho até o lugar preferido, ou perto. Só que o algoritmo dos streamings não conhecem você, só obedecem a lógica programada. E assim a gente deixa de encontrar pérolas ocultas, obras-primas insabidas, cults raros. De que serve um algoritmo sistemático para cinéfilos ecléticos? 

(O bom é que o garimpador de filmes já tem um aliado: o site www.justwatch.com mostra tudo que todos os streamings têm nos acervos. Ponha um título antigo na busca e ele confirma na hora se está ou não disponível, e onde e o preço. Um achado.) 

Aí, nas madrugadas, em meio a uma sessão caseira, penso na minha sala favorita, vazia à essa hora. Que é feito dela sem tantos como eu, adúlteros domésticos? Que estranho abandono pandêmico esse. Cinemas fecharão, salas vão virar outra coisa. E os streamings crescerão como estúdios, com centenas de produções não mais para telonas, mas abastecerão todas as plataformas eletrônicas, telinhas minúsculas. 

Abatidos a tiros de mesmice na quarentena, somos o alvo perfeito pros streamings. Mesmo não sendo alienado, chega uma hora que você quer remover o bozonarismo da mente. E ali está, na palma da mão ou no desquitope, o streaming nosso de todo dia. E o safado se ilumina, como se pudesse competir com a magia da sala escura de um cinema de 300 lugares (já estive em alguns com mais de 1.500). 

E com o mouse você se resigna, suspira, e clica.

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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