Transparências

Por Fraga

Cada um com suas inquietações não é mesmo? E eu cultivo várias, tenho hectares mentais delas. Algumas são inevitáveis: a realidade é uma fornecedora contumaz de inquietações, intrometida que só ela. Outras são de estimação, tão antigas como saber de mim mesmo. 

É o caso de uma das menorzinhas, a transparência no mundo físico. A começar pelo ar e a água, diria que até hoje não compreendo bem a transparência material. Décadas vendo e tocando seres e objetos transparentes, ainda não atino como a natureza e o ser humano produzem algo transparente. Como assim, "ver" através das coisas?! 

Que me lembre, o espanto começou em tenra idade, e a maravilha das maravilhas era o papel celofane (que nem papel é). Macio, liso, flexível, um deslumbramento sem cor. Sua função, embrulhar sem esconder o que vai dentro dos embrulhos, acho inexplicável. 

Daí ao rol das transparências inadmissíveis é um passo, que dou agora pro eventual leitor.

Andar na areia é como pisar numa potencial vidraçaria. Mas uma coisa é um punhado de grãos de sílica na mão, a escoar entre os dedos. Outra muito diferente é aquecer isso a 1.700 graus, misturado com soda cáustica e sal, derreter tudo até cristalizar e virar janela, box de banheiro, garrafas, óculos, vidro de perfume, copos e taças. Inaceitável um enigma desses tirando nossa paz de espírito. 

Mais assombroso ainda é a fábrica da natureza: pega uma substância, pressiona com toneladas de peso e por milhões de anos e nos entrega jazidas de cristal quartzo hialino ou de diamantes. Sem mais o que fazer com a abundância de matéria prima e a eternidade pela frente, a natureza recorre ao exibicionismo das suas forças para mostrar durezas e purezas incríveis. E transparentes! 

Para competir com ela, o ser humano usa e abusa da química e da petroquímica. E tome acrílicos, silicones, policarbonatos compacto, polietilenos e poliestirenos ao nosso redor. Das utilidades domésticas ao vestuário, de materiais de construção a elementos decorativos, de componentes científicos a peças eletrônicas, a transparência nos envolve o tempo todo, como um filme plástico. Só não vê quem não quer. 

Até aí tudo bem, diria um crédulo. Estamos no território do inanimado, das coisas sem vida. Mas quando a nossa incredulidade se depara com uma fauna transparente, adjetivar com assombro é muito pouco. Bicho transparente parece impensável até que, na mesma praia vidraceira, a gente encontra uma água-viva. Já não está tão viva mas continua a nos impressionar: um ser gelatinoso com todo seu interior visivelmente visível. Nada é concreto nesse animal, e no entanto ela se movia, vivia, comia, se reproduzia! 

Ah, dirão os não-inquietos, água-viva dá pra aceitar, apenas mais um bicho incompreensível do mar. É, mas ela não está sozinha nesse singularidade aparente da matéria orgânica. Os oceanos e os rios têm uma enorme quantidade de espécies transparentes, veja o resumo: um camarão-fantasma, o polvo da família Vitreledonellidae, o peixe ocelado, o pexei-zebra transparente, o pepino do mar, a lula de vidro, a anfípoda transparente, as salpas, a aphoa minuta espécie de peixe (mais conhecido como o caboz transparente). Pra enxergar a todos, só mesmo mergulhando no mar do gugol. 

Também em terra há animais que até nossas retinas duvidam: já ouviu falar no sapo de vidro? São os anfíbios da família Centrolenida. Numa caverna superprofunda da Croácia encontraram uma espécie de caracol com uma concha transparente: a criatura foi nomeada Zospeum tholussum, desigual a qualquer outro troglobita. 

E até nos ares o avesso do opaco voa: existe uma borboleta com asas transparentes, com nome em espanhol: espejitos. Despercebida, borboleteia discretamente. 

Como a flora não podia deixar de surpreender, os jardins exibem a flor esqueleto. Ela tem suas várias cores. Mas é só chover ou ser regada que as pétalas ficam transparentes. Formam canteiros quase invisíveis. Fora essa flor, algumas árvores produzem o âmbar, uma resina tão transparente que chega a ser usada como joia. 

E pro ser humano não dizer que não foi contemplado com esse bizarro mimetismo com o nada, não custa lembrar: o olho humano também tem partes transparentes. Sim, o humor vítreo, que dá forma e volume ao olho, é composto de água e um líquido viscoso. Junto com o cristalino, que recobre a retina como uma lente, enchem nosso dom da visão de surpresas. Daí, talvez, a sua preferência por gelatinas transparentes, feita do colágeno das cartilagens animais.

O oposto do olho é o resto do ser humano: nada mais é transparente em nós.  Sobretudo a alma ou o caráter. Muita gente se acha ou diz ter transparência mas, cá entre nós, é apenas o ponto de vista deles, que não se enxergam. Basta lembrar dos políticos, que a toda hora tentam afirmar alguma transparência. Não chegam nem a ser translúcidos. E muito menos lúcidos.

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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