Um abecê do jornalismo
Por Fraga
Abordagem - Para contornar a mesmice, há sempre um ângulo menos óbvio de encarar cada assunto. O resto é falta de assunto.
Admiração - É o máximo que um jornal deve aspirar merecer de seus leitores. O mínimo é respeito.
Análise - A interpretação dos fatos mostra o quanto um jornal entende a realidade por trás deles. Se não sabe fazer, então é o jornal que tem de ser analisado.
Anúncio - Existe para vender coisas ao leitores, não para comprar o jornal em que é publicado.
Apuração - O fundo não é onde termina uma reportagem. É onde ela começa.
Artigo - Texto conciso que se concentra em determinado tema. Pelo mérito, pode ser artigo de primeira necessidade ou artigo supérfluo.
Aspas - Seu uso esclarece indefinições, incertezas, ironias. Assim como quando se escreve "jornal".
Assunto - Cabe tudo num jornal. Se sistematicamente ele evita tocar em certas pautas, aí não tem cabimento.
Bravura - Como nenhum jornal é obrigado a ser combativo, ser corajoso por ofício já basta.
Cabeçalho - É a parte superior da página, tão significativa quanto a parte inferior, o rodapé.
Caderno - De economia, de cultura, de esportes, de saúde, de tv, de fim de semana etc. O jornalismo encadernado.
Capa - A primeira página sempre diz a que veio o jornal. Se não diz claramente é porque o jornal não está nem aí.
Caricatura - Retrato com traços exagerados de personagens do noticiário. Acentua a disposição crítica de um jornal.
Censura - Em qualquer jornal, pior que ela, só a autocensura.
Charge - Desenho editorial que comenta criticamente fatos locais, nacionais, mundiais. É um clichê e pura verdade: cada jornal tem o chargista que merece.
Circulação - É o meio, amplo ou restrito, onde o jornal é lido. A mais gratificante talvez seja a de mão em mão.
Clareza - Quase tudo na vida faz sentido. Nenhum jornal pode atrapalhar a compreensão básica.
Cobertura - Abrangência editorial. Se o jornal não for abrangente, é indigente.
Coerência - Dizer, desdizer, contradizer: eis os sinais expressivos dos jornais inexpressivos.
Colunista - Quando o colaborador tem luz própria, sua coluna pode virar um pilar.
Comunicação - Se um jornal não se comunica, ele se trumbica, seja em Cumbica ou Itapecerica.
Concisão - Dizer mais com menos, sem mais ou menos.
Consistência - Ao se espremer um jornal, atenção: se restar apenas celulose e tinta, é inconsistente.
Conteúdo - Tudo que recheia os jornais, inclusive aqueles que são ocos.
Contexto - Crucial na leitura, até mesmo pro leitor se situar em que desinformação se meteu.
Copidescagem - Quando o texto já nasce bem escrito, não há o que copidescar; quando for necessário, que não pareça copidescado.
Credibilidade - Até para enrolar peixe jornal tem que ter crédito, senão o peixe, o peixeiro e a peixaria ficam mal.
Critério - A peneira entre o aproveitável e o descartável, o publicável e o impublicável. Quanto menor o furinho, mais criterioso o jornal.
Crônica - Texto leve, gracioso, atemporal, sem fins informativos.
Data - Como diz Luis Fernando Verissimo, às vezes é a única coisa verdadeira num jornal.
Denúncia - Doa a quem doer em toda investigação: não pode existir anestesista numa redação.
Diagramação - Além do bom design ampliar o prazer de folhear, ninguém se perde em jornal bem arrumado.
Edição - A tarefa de reunir e espalhar as matérias, de harmonizar ou contrastar o conteúdo. Cada jornal tem sua fórmula, alguns até formulários.
Editor - Jornalista que decide o que vai entrar ou ficar fora da edição do jornal. Uma porta giratória de mão dupla.
Editoria - Cada um dos setores que, bem ou mal, um jornal cobre.
Editorial - É a manifestação mais representativa do pensamento do jornal. A depender dos interesses, tanto pode defender o indefensável como atacar o inatacável.
Entrelinhas - O inevitável espaço onde emerge muito do que não foi dito. Não podem, evidentemente, exceder o número de linhas.
Entrevista - Das grandes atrações que um jornal pode trazer. Se as perguntas forem mais curtas que as respostas, já se configura uma surpresa jornalística.
Equilíbrio - Um jornal equilibrado resiste até a pilhas de exemplares malfeitas.
Ética - O problema do Brasil não é a falta dela, é o excesso: cada brasileiro tem a sua. Sem falar nos jornais antiéticos.
Exemplar - Cada um dos jornais avulsos, embora nem todos sejam exemplares.
Extra Classe - Jornal do Sinpro/RS, principal objeto deste livro. Inspiração maior de todos os elogios deste texto, diretos ou indiretos.
Fato - Ocorrência do dia a dia, com ou sem b.o. O contrário do fato é a ficção, recurso jornalístico até em jornalões.
Foco - Nenhum jornal pode ser dispersivo ao tratar um assunto. A não ser sobre a dispersão no carnaval da Sapucaí.
Fontes - Sem elas, a veracidade dos fatos vai pra Cucuia; sem preservá-las, a Cucuia vem pro jornalismo.
Foto - Sua aplicação tem a finalidade de enriquecer o conteúdo, jamais a de tornar o jornal fotogênico.
Grifo - Serve para destacar detalhes nos textos, através do negrito e do itálico. A serventia é mínima mas funcional.
Humor - Contribui para o jornal contrabalançar pautas sérias, graves, trágicas. Um humorista ou um cartunista em cada jornal deixa os leitores com a página nas orelhas.
Ilustração - Costuma-se utilizar para arejar espaços, enriquecer matérias, surpreender o olhar. Bonito costume.
Imparcialidade - Se o mundo fosse justo, o jornalismo imparcial não seria incômodo.
Imprensa - Vulgo Quarto Poder, que os outros três poderes insistem em vulgarizar.
Impressão - A pior é quando falha o registro na rotativa; a melhor é quando alguém recomenda o jornal a outrem.
Independência - Independente mesmo, só o jornalismo anuro - o mais difícil de ter o rabo preso.
Informação - Vai da útil à inútil, algo suficiente para abastecer todos os jornais do planeta.
Jornais - São depósitos concentrados do cotidiano. Até mesmo um minúsculo jornal pode constituir o patrimônio retrospectivo de uma época, região, sociedade.
Jornalista - Profissional em extinção. Precisa ser preservado a qualquer custo, quer dizer, bons salários.
Legenda - Algumas vezes são dispensáveis, noutras vezes o dispensável é o encarregado de legendar.
Legibilidade - Um jornal ilegível um bom designer tira de letra.
Leitor - Salvo alguma vida inteligente extraterrestre, para os jornais é o ser mais importante do universo.
Linguagem - Uma ponte entre os jornais coloquiais e os leitores; entre os jornais sisudos e os leitores, um abismo.
Manchete - Antigamente atraía aos berros. Hoje chama a atenção pela falta do que dizer.
Matéria - A oportunidade que os fatos têm de se tornarem memoráveis. Ou esquecíveis.
Missão - É o oposto de omissão, e um bom jornal precisa se precaver para não cair em nenhuma das duas.
Notícia - Além das boas e más, existem as melhores e as piores: aquelas bem tratadas e aquelas mal escritas.
Objetividade - Textos objetivos geralmente são lineares, o que obriga a informação a andar na linha.
Olho - Texto mínimo destacado entre os blocos informativos. Se piscar para o leitor, fica perfeito.
Opinião - Essencial a qualquer jornal, desde que não seja sistematicamente opinativa.
Página - Cada uma das folhas do jornal. E apesar de serem únicas, todas acabam do mesmo jeito: página virada.
Pauta - Rol de assuntos que disputam espaço na próxima edição do jornal. Uma expectativa ronda a reunião: o inesperado costuma furar a fila.
Penetração - Como mídia, a maioria dos jornais vai longe. Como veículo social, uma minoria vai muito além.
Periodicidade - Não importa se é diário, semanário ou mensário. O importante é que seja pontual.
Posicionamento - Há jornais em cima do muro, atrás do muro, na frente do muro, ao lado do muro. Há jornais que moram no muro, outros locam o muro, alguns zelam pelo muro, sem esquecer os donos do muro. Há jornais que preferem muretas enquanto outros estão a fim de muralhas. E, claro, há jornais muito acima do muro.
Postura - Todo jornal que se curva fica com o seu na reta.
Público-alvo - Quem tem público-alvo é a indústria de armas. Jornal tem leitores.
Precisão - Seu sinônimo, difícil de conseguir, é exatidão; seu antônimo, fácil de obter, é confusão.
Princípios - Dá para fazer mídia só com meios e fins. Não dá é para chamar de jornal.
Profundidade - O ideal é que o jornal se proponha tão profundo que ouse afirmar isso num slogan, tipo Jornalismo além da superfície.
Quadrinhos - Humor em tiras que divertem e fazem pensar o leitor de jornal, sobretudo se forem de artistas brasileiros.
Redação - Conjunto de várias capacidades jornalísticas num mesmo lugar. Por exemplo: na Av. João Pessoa, 919.
Redator - Escreve certo por rascunhos tortos. Condensa, aumenta, resume, reescreve, reduz. E conduz rebanhos de milhares de palavras até o abatedouro do ponto final.
Relevância - É o aspecto menos palpável num jornal. Mas é justamente onde os leitores exigentes mais se agarram.
Reportagem - A suprema criação do jornalismo. Demanda tempo, trabalho, talento - coisas comuns num bom jornal.
Repórter - É a alma de um jornal, o que não impede haver jornais desalmados.
Responsabilidade - A lei exige que todo jornal tenha um jornalista responsável. O leitor espera que a redação inteira seja.
Reticências - Mesmo que jamais use os três sinaizinhos, ainda assim todo jornal tem de evitar ser reticente.
Revisão - Se errar é humano, revisar é profissionalismo.
Rodapé - É a parte inferior da página, tão significativa quanto a parte superior, o cabeçalho.
Seção - Por menor que seja, completa o jornal. Se for demasiado grande, complica o jornal - vide seção comercial.
Sensacionalismo - O cérebro fica atrás das glândulas lacrimais. Para alcançá-lo, o jornal tem que desviar delas.
Serviço - Um jornal pode ser prestativo mesmo que não queira: ele tem a função de publicar releases de utilidade pública.
Subtítulo - Está para o título assim como o garçom está para o chef.
Tabloide - Formato reduzido de muitos jornais, inclusive de alguns que não se apequenam.
Tendência - A questão não é se um jornal é tendenciosamente de direita, de centro ou de esquerda. A questão é se ele é ou não é democrático.
Tipografia - O conjunto de fontes utilizado para compor o jornal. Bem usado, dá personalidade a ele; mal usado, tira.
Tiragem - Total de exemplares impressos. Ajuda a definir o porte de um jornal, não a sua grandeza.
Título - Pequena frase que antecede as matérias. Através dele se percebe se um jornal é interessante ou interesseiro.
Transparência - Papel jornal é opaco mas conforme o que se escreve nele, pode se tornar cristalino.
Valor - Um jornal vale tanto quanto aquilo que pratica. Sem nada a ver com o preço de capa.
Verdade - Como metáfora, é inatingível; como jornalismo, é inescapável. Ponto final.
(Texto criado especialmente para o livro Extra Classe 20 Anos, lançado em março de 2016 pelo Sinpro-RS em comemoração à data. Pela primeira vez é publicado na web, com exclusividade aqui no Coletiva. Resolvi publicá-lo depois que vi a aula que Glenn Greenvald deu a jornalistas despreparados, no programa Roda Viva de 2/9)