Especial: Documentário resgata a saga para transformar igreja em centro cultural

Comunidade mobilizada em Dois Irmãos salvou antiga matriz da demolição

Antiga matriz de São Miguel e a nova ao fundo - Crédito: Octacílio Freitas Dias

Série especial de matérias sobre gaúchos que conseguiram vencer a pandemia no meio Cultural. A produção é da jornalista Daniela Sallet, em parceria com o portal Coletiva.net. 


Se é verdade que "qualquer história bem contada vale um filme", a do Espaço Cultural Antiga Matriz de São Miguel merece muito os seus 70 minutos de duração. A produção cumpre o papel de documentar a trajetória da instituição, mas vai além. Com um roteiro que se utiliza de elementos universais como a briga de interesses, a mobilização coletiva e o valor da memória, é a história de amor a um patrimônio arquitetônico e afetivo da cidade. E mostra como a comunidade de Dois Irmãos se organizou para preservar um legado. 

A antiga igreja estava condenada à demolição quando a nova ficou pronta, na década de 1970. Mas segue majestosa no centro da cidade. O motivo? Houve quem se indignasse com os planos do vigário. A protagonista, neste caso, é uma construção de estilo eclético, com uma rica coleção de grandes vitrais, dois deles vindos da Alemanha. O fio condutor da narrativa é a diretora do ECAM, Vera Maria Rausch, que está na função desde o início das atividades. Ela faz parte do grupo de fundadores e já presidiu a Associação Amigos do Patrimônio Histórico e Cultural, que administra o local.

Diretora do ECAM, Vera Rausch, com empresário José Agnelo Seger - Crédito: Monique Mendes

A diretora aparece logo na primeira cena, empurrando as duas abas da porta principal para entrar no templo religioso que ajudou a transformar. Junto com Vera, que segue devagar corredor adentro, o espectador começa a conhecer o espaço minuciosamente preservado. Os lustres e as pinturas coloridas no teto e nas paredes, o púlpito dos antigos sermões à esquerda, um altar lateral à direita e, ao fundo, três altares imponentes em madeira. Só faltam as imagens sacras, que foram levadas para a nova matriz, assim como os bancos de madeira, substituídos por cadeiras estofadas para a plateia acompanhar palestras e espetáculos. Já o piano de cauda, na diagonal do altar-mor, deixa claro o propósito.

Não podia ser diferente no filme. O diretor Alexandre Derlam dos Santos incluiu a música em muitos momentos da narrativa, inclusive imagens de arquivo de um concerto de 1999, em meio a andaimes e tapumes. Com a restauração ainda em andamento, a pianista Olinda Alessandrini se apresentou com a soprano Laura de Souza. 

Gravações do documentário - Crédito: Monique Mendes

Olinda fez também o espetáculo de inauguração, em 2007, e agora voltou a Dois Irmãos para tocar duas músicas especialmente para o documentário. Foi um desafio gravar em meio à pandemia. "Tudo com proteção total, máscaras o tempo inteiro, higienização e o maior distanciamento possível. Para o coral, programamos com antecedência com o regente, e reunimos o grupo sem aproximação. A cada música, abríamos as portas e ligávamos os ventiladores para arejar. Além disso, doses fartas de álcool em gel", o diretor explica. O calor foi outro grande desafio. "Rodamos em janeiro e fevereiro. Tivemos que interromper um depoimento por causa do suor e, em dias muito quentes, foi necessário reagendar", lembra Alexandre. 

A igreja, como é vista hoje, foi concluída por volta de 1950, quando recebeu os últimos adornos externos. Mas é preciso voltar bem mais no tempo (e o documentário faz essa imersão), para entender todo o engajamento em preservar a construção. Tem a ver com a história de cada um, com a imigração alemã do Vale dos Sinos que começou em 1824. 

A antiga colônia de Baumschneiss, como se chamava Dois Irmãos, era a maior da região. Foi na década de 60, do século XIX, que as paredes da matriz começaram a ser erguidas. Ilustrações, documentos e fotos permitiram reconstituir episódios como a bênção solene, uma festividade que reuniu três mil pessoas de várias colônias alemãs, em abril de 1880. Lá estava o Coral Santa Cecília, o mesmo da gravação no último janeiro, que se mantém atuante há gerações.

Pianista Olinda Allessandrini - Crédito: Monique Mendes

No século seguinte, em 1975, a velha matriz foi desativada como templo religioso. A decisão da paróquia era colocar o prédio abaixo, já que a nova igreja estava concluída, na quadra vizinha. Muita gente se mostrou contrária, mas uma jovem moradora foi decisiva para o que se tornou uma longa campanha. 

Bernadete Rausch fazia Faculdade de Turismo em Porto Alegre e, quando soube da ameaça de demolição, procurou a redação do jornal Correio do Povo. A reportagem impactou a cidade. "As pessoas não estavam entendendo meu gesto, eu estava preocupada com a preservação do prédio, não queria causar polêmica, só queria ver a igreja de pé", conta ela, em depoimento gravado remotamente. 

Como Bernadete, personagens que lutaram pela preservação desfilam pelo documentário. A professora Theresinha Malheiros, que integra a Associação de Amigos, descreve o dia em que a direção da Escola Estadual levou os alunos para um abraço na matriz. Vera Rausch, por sua vez, fala do abaixo-assinado com a adesão de mil moradores: "Foi um movimento decisivo, que levou ao processo e ao tombamento 10 anos depois, em agosto de 1984".

Músico Luciano Camargo - Crédito: Monique Mendes

O filme conta cada longa etapa da transformação da igreja em centro cultural. E tem sua própria história de superação. "Trabalhamos de outubro a março, o que é um prazo muito curto. Toda montagem e finalização levou um mês apenas", fala o diretor que é também professor de cinema e acabou participando de todo o processo. "Estive muito próximo das roteiristas, foi uma troca muito rica entre toda a equipe", diz.

O documentário é parte do projeto 'Memórias e História - 150 Anos da Antiga Matriz' realizado em 2019. No plano original, marcaria o encerramento das comemorações. "Infelizmente, a verba captada diretamente com empresas patrocinadoras locais não foi suficiente, tínhamos só a metade do valor", explica a produtora cultural Luana Khodja, que também assina o roteiro, junto com a diretora do ECAM. 

Antiga matriz de São Miguel - Crédito: Maurício Chaves/Amvars

A pandemia retraiu ainda mais as empresas até que, na metade do ano passado, a Associação dos Amigos conseguiu recursos emergenciais da Lei Aldir Blanc para a área cultural. Com a verba privada anterior e ainda um edital municipal, a produção pôde, enfim, acontecer. "Os maiores investidores são empresários locais que já apoiaram outros projetos de preservação. Eles reconhecem a importância da Antiga Matriz e todo o empenho da Associação de Amigos para preservar nossa memória", constata. 

O próprio Instituto do Patrimônio Histórico do Estado reconhece que não é comum a população se envolver para reivindicar bens culturais. "Dois Irmãos é exemplar, conquistou um tombamento com muita união. Foi uma demonstração de amor da comunidade por este bem", declara a ex-diretora do IPHAE Miriam Rodrigues. 

Na igreja emblemática, a programação cultural volta em junho, no formato on-line. Do alto do seu século e meio e passados 14 anos da inauguração como espaço de cultura, a antiga matriz de São Miguel segue mais sólida do que nunca. Como um prédio que reafirma uma identidade imigrante e como um daqueles filmes inesquecíveis, que reservam um gratificante final feliz.

Links para ver o documentário:

Versão sem legendas 

Versão inclusiva, com legendas em português

Versão com legendas em alemão

 

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